Criar um Site Grátis Fantástico
Atos 17:16-34
Atos 17:16-34

Em Atenas 

 

O grande interesse desta seção está no discurso de Paulo no areópago. lile nos fornece um paradigma de sua pregação aos pagãos. Em vez de começar "com Moisés e todos os profetas" (Lucas 24:27), a saber, com ;i "teologia revelada", a aproximação de Paulo era mediante a "teologia natural". Em 14:15-17 temos um exemplo primitivo desse método evangelístico. Ali, Paulo enfrentara um auditório bem diferente daquele de I , is(ra. Ao povo dessa cidade, Paulo falara sobre Deus como Aquele que nos propicia as estações do ano e as colheitas; mas ao falar aos membros do areópago, era-lhe necessário usar um método filosófico, e um apelo não tanto às evidências da natureza, mas principalmente ao testemunho de Deus na consciência e na mente humanas. Persiste, contudo a questão: Poderia (ou deveria) Paulo fazer um discurso desse teor? O texto quase paralelo a esse, a que temos acesso, é Romanos 1-3, mas esta carta tem um objetivo diferente e, portanto, sofre uma ênfase diferente (uma argumentação mais pesada contra a idolatria), daquela que vemos neste sermão. Entretanto, quando comparamos estes versículos com Romanos, nenhuma diferença essencial vem à luz, e nada encontramos que o autor ile Romanos não poderia ter dito. Além do mais, o sermão adapta-se muito confortavelmente "na categoria de um tipo largamente difundido de literatura propagandística religiosa encontrada tanto nos escritos judaicos como nos pagãos" (H. Conzelmann, Estudos, p. 225). Em suma, nada existe neste texto de que se possa declarar não ter saído da mente de Paulo. Por outro lado, se este sermão é invenção de Lucas (como alguns alegam), deveríamos esperar nele duas coisas que estão ausentes: um conteúdo mais explicitamente cristão (mas veja W. Barclay; AHG, p. 166, quanto ao caráter cristão implícito desse sermão), e um resultado muito melhor. É verdade que o sermão chega a nós com vestígios da técnica de Lucas, mas podemos aceitá-lo como sendo essencialmente paulino.

17:16 / A viagem de Paulo a Atenas iniciou-se na Macedônia e terminou na Acaia. Após a derrota da Liga da Acaia contra os romanos, cm 147 a.C, esta área passou a ser administrada da Macedônia, pelos romanos, até 27 a.C, quando se tornou província senatorial separada. De 15 d.C. a 44 d.C. esteve unida de novo à Macedônia, com Mésio, sob o governo de um legado mésio (veja a disc. sobre 16:12), e era de novo uma província separada quando Paulo a conheceu. Sua capital era Corinto, mas Atenas era a cidade mais prestigiada. Agora, os mais ricos dias de Atenas já estavam sepultados no passado, embora ela ainda pudesse ser considerada com certeza a capital intelectual do mundo greco-romano e, à época, a capital religiosa da Grécia. Era também guardiã de um dos mais preciosos tesouros de arte e arquitetura. O general romano Sulla havia saqueado a cidade em 86 a.C, mas os danos se limitaram à propriedade particular. Subseqüentemente, sob o governo de Augusto e, em menor escala, sob os governos que lhe sucederam, os romanos construíram outros edifícios públicos para maior adorno da cidade.

Presumindo-se que Paulo chegara à Beréia de navio (veja a nota no v. 14), e que desembarcara no Pireu, teria tomado a via Hamaxitos, a caminho da cidade. Depois de nove quilômetros a pé, ei-lo diante do portão Dipilão; a leste dele ficava a Agora (NIV, "praça do mercado"; ECA, praça; v. 17) e a Acrópolis. Enquanto Paulo caminhava por esta praça e pelas ruas de Atenas, por todos os lados, em nichos e em pedestais, em templos e nas esquinas, seus olhos fixavam-se nas obras dos grandes artistas. Todavia, o apóstolo via aquelas representações de deuses e semi-deuses não como objetos de beleza artística, mas como exemplos de idolatria alucinada (cp. Filostrato, Vida de Apolônio de Tiana 4.19). De início a intenção de Paulo poderia ter sido não pregar enquanto Silas e Timóteo não chegassem. Todavia, tão desgostoso estava o apóstolo (o seu espírito se revoltava em si mesmo) pelo que via que não conseguiu descansar (o verbo corresponde ao substantivo de 15:39 —Paulo sofria em agonia). De 1Tessalonicenses 3:1-2 ficamos sabendo que Timóteo encontrou-se de novo com Paulo em Atenas, mas foi enviado de volta "para vos confortar e vos exortar", isto é, aos tessalo­nicenses. De 18:5 pode-se deduzir que Silas não foi à Beréia senão depois de Paulo ter ido a Corinto. Silas e Timóteo chegaram juntos; Timóteo retornava de sua segunda viagem à Macedônia.

17:17 / Nesse entretempo, a primeira aproximação de Paulo foi à sinagoga; ali ele encontraria pelo menos alguma compreensão, dado o terror que sentira face à idolatria daquele povo. E também poderia partilhar o evangelho com seus patrícios. É provável que os judeus não fossem numerosos em Atenas, mas, como era costumeiro, a comunidade judaica lhe provia uma base por onde começar seu trabalho (veja a disc. sobre 9:20 e a nota sobre 13:14). O método paulino de apresentar o evangelho é o mesmo empregado em Tessalônica (veja a disc. sobre o v. 2); entretanto, Paulo também leva seu método evangelístico à Agora (praça), onde ele discutia... na praça com os que se apresentavam, de forma muito semelhante a Sócrates, nesse mesmo lugar, 450 anos antes.

17:18 / Atenas era uma cidade cosmopolita; Paulo viu-se com certeza diante de uma pequena multidão variada, na praça. Contudo, o apóstolo não teria contato apenas com hoi polloi, mas também com alguns filósofos freqüentadores desse lugar — epicureus e estóicos. Paulo os encontrou várias vezes (é o que dá a entender o imperfeito do verbo grego), mas esses homens ainda não haviam entendido o que Paulo dizia. Ouviram-no falar de Jesus e a ressurreição, mas para seus ouvidos tudo soava como se ele fosse pregador de deuses estranhos (Mt., "demô­nios", no sentido neutro do grego). Aparentemente interpretaram a mensagem de Paulo achando que ele se referia a duas deidades, Jesus e "seu companheiro", Anastasis (palavra grega para ressurreição), enten­dendo talvez que fossem a Cura (a palavra Jesus soava mais ou menos como a palavra grega para "cura") e a Restauração. Não é de surpreender que eles pensassem assim, visto que os próprios gregos atenienses haviam edificado altares à Modéstia, à Piedade, e a outras virtudes (cp. Pausânias, Descrição da Grécia 1.17). O interesse dos filósofos pelo ensino de Paulo talvez não passasse de curiosidade acadêmica, mas poderia haver aí pequeno indício de ameaça, visto que em Atenas a introdução de deuses estranhos, embora fosse prática comum, constituía ofensa capital se, por essa razão, as deidades locais fossem rejeitadas e a religião estatal perturbada (cp. Xenofonte, Memorabilia 1.1; Josefo, Contra Apion 2.262-275). Alguns filósofos nada viram no ensino de Paulo e desligaram-se, dando-lhe a alcunha de este paroleiro (esta palavra tem o sentido de "varejista de idéias de segunda mão"). Outros, todavia, achavam que seu ensino merecia uma investigação mais profun­da e, com esse objetivo, levaram-no perante o conselho do areópago (v. 19). Nada existe que sugira que Paulo está enfrentando um processo judicial. Em vez disso, parece que está havendo um tipo de audiência preliminar para estabelecer se ele deve ser processado com acusações. No fim, nada houve, e Paulo teve permissão para ir embora sem ser molestado (v. 33).

17:19-21 / O areópago era a instituição mais venerável de Atenas; sua história perde-se em tempos legendários. A despeito de grande parte de seu poder ter sido podado, o areópago continuou a gozar de imenso prestígio. Suas funções tinham variado, de tempos em tempos. Em certos períodos, sua jurisdição ficara limitada a casos de crimes de pena capital. Noutras épocas, o areópago esteve relacionado a vasta gama de pendên­cias religiosas, educacionais, políticas e legais, como nessa época em foco (segundo nos parece), visto que o demos estava praticamente extinto. (Atenas era uma cidade livre, com direito de dirigir seus próprios empreendimentos.) O areópago tomou seu nome de uma pequena colina postada bem à frente da Agora (praça) — a colina de Ares — em que se esculpira um lance de degraus, no lado sudeste; fragmentos remanescen­tes de bancos esculpidos na rocha podem mostrar onde os conselheiros costumavam reunir-se. Todavia, com o passar do tempo, tornou-se costumeiro que o conselho se reunisse noutros lugares, talvez numa área demarcada com cordas, na Stoa Basileios, no canto noroeste da Agora (veja J. Finegan, "Areópago", IDB, vol. 1, p. 217).

A primeira pergunta foi, literalmente: "Poderemos nós saber que nova doutrina é essa de que falas? " (v. 19), mas sem ouvirmos o tom de voz, torna-se impossível saber se a pergunta foi formulada com cortesia ou com sarcasmo; todavia, visto que o texto grego recebe alguma ênfase na frase nova doutrina, talvez a pergunta seja mesmo sarcástica. Devido, quem sabe, a essa atitude e à reação imprópria desses homens diante de um assunto que Lucas julgava ser da maior importância, o autor ficou mal impressionado com os atenienses. Num aparte ele comenta que os atenienses tinham mentalidade rasa, pois de nenhuma outra coisa se ocupavam (o imperfeito indica que esses eram os hábitos deles), senão dizer e ouvir a última novidade (v. 21), e nunca (por implicação) levar a sério o que ouvem. Tampouco Lucas emitiu opinião própria, isto é, dele mesmo. Era opinião compartilhada por alguns de seus próprios patrícios (Tucídides, História da Guerra do Peloponeso 3.38; Demóstenes, Pri­meira Filípica 43; Carta de Filipe 156s.).

17:22-23 / Fosse qual fosse o espírito com que a pergunta tivesse sido feita, Paulo a tomou com seriedade e assim se pôs a responder a ela. Levantou-se e dirigiu-se aos homens no mesmo estilo de oratória deles ("homens atenienses"; mas veja a nota sobre 1:16), e faz uma observação: em tudo vejo que sois muito religiosos (v. 22). A palavra traduzida por "religiosos" (deisidaimonesterous) pode ter um sentido mau, ou bom (o substantivo correspondente parece que foi usado de modo pejorativo em 25:19). O adjetivo aqui está no grau comparativo, e tanto pode significar que eram mais devotos que a maioria na prática de sua religião, como que eram mais supersticiosos. É provável que Paulo tenha escolhido deliberadamente essa palavra, com gentil ambigüidade, a fim de não ofender seus ouvintes, almejando ao mesmo tempo satisfazer-se, ao expressar o que pensava deles. Logo esses homens ficariam sabendo qual era a opinião de Paulo a respeito deles. Por ora, abundavam as evidências, por todos os lados, de que eram de fato "muito religiosos". Uma das inscrições em particular havia atraído a atenção de Paulo. O apóstolo havia observado um altar com esta dedicatória: AO DEUS DESCO­NHECIDO (v. 23). Paulo tomou essas palavras como se fora "seu texto". É claro que não havia nenhuma ligação entre esse deus e o Deus que ele proclamava. O apóstolo não sugeriu em momento algum que eram adoradores inconscientes do verdadeiro Deus, mas procurou apenas um meio de levantar perante eles a questão básica da teologia: Quem é Deus?

17:24 / A resposta de Paulo a essa pergunta foi que Deus é o criador. Ele fez o mundo e tudo o que nele há. Essa declaração veio diretamente do Antigo Testamento (p.e., Gênesis 1:1; Êxodo 20.11; Neemias 9:6; Salmo 74:17; Isaías 42:5; 45:7); a linguagem, entretanto, não veio direta, visto não existir no hebraico uma palavra para "mundo". A Bíblia hebraica fala "do céu e da terra" ou de "tudo" (Jeremias 10:16). "O mundo" (gr. kosmos) encontra-se no judaísmo de fala grega (Sabedoria 9:9; 11:17; 2Macabeus 7:23), mas o uso que Paulo faz dessa palavra aqui pode ter sido menos por influência judaica e mais pela de Platão e Aristóteles. Seja como for, a influência paulina é que o mundo não existe por acaso, mas pela obra de Deus. Seguem-se várias conseqüências disso: primeira, Deus não está separado de sua criação, como julgavam os epicureus e, segunda, Deus é maior do que sua criação. Portanto, Deus não pode ser confinado a templos feitos por mãos de homens (os estóicos concordavam com isto alegremente, mas partindo de premissas diferentes). De novo as palavras de Paulo traziam um aguilhão contra eles, e agora poderia ser bem sofrido, porque "feito por mãos de homens" era expressão comumente usada pelos filósofos gregos e pelos judeus, de modo igual, em seus ataques à idolatria (veja a disc. sobre 7:48). A segunda metade deste versículo pode ser um eco deliberado do sentimen­to expresso na oração de Salomão (1 Reis 8:27).

17:25 / Mais ainda, em terceiro lugar, Deus não precisa de algo que possamos suprir. O verbo significa "precisar de adição", como se algo fosse necessário para completar a pessoa de Deus. O epicureu romano Lucrécio (m. 55 a.C.) havia dado testemunho da idéia de que Deus "de nada necessita de nossa parte" (Da Natureza das Coisas 2.650), e seus correligionários gregos deveriam ter acenado em aprovação a Paulo, neste ponto. O mestre de Paulo, contudo, continua a ser o Antigo Testamento. O Salmo 50:7-15 salienta esse ponto (cp. também 1 Macabeus 14:35; 3 Macabeus 2:9; Filo, Leis Especiais D 1.291). Isso é evidente a partir do fato de que o próprio Deus é a fonte da vida humana. Então, que é que podemos dar a Deus? Este pensamento se expressa com grande ênfase no grego "nem tampouco é servido por mãos de homens" e sublinhado de novo pelo particípio presente, "Ele [Deus] continua dando" vida (dá a todos a vida). Esta descrição de Deus é tirada de Isaías 42:5 (cp. Gênesis 2:7; Sabedoria 1:7, 14), mas Paulo poderia ter em mente um sentido duplo, visto que vida (gr. zoe) estava ligada popular-mente a Zeus (Júpiter), e o apóstolo deveria saber que Deus, e não Zeus, era a fonte de vida (veja a disc. sobre 14:7). O melhor comentário deste versículo encontra-se em 1 Crônicas 29:14. Assim ora Davi: Mas quem sou eu, e quem é o meu povo, que pudéssemos dar voluntariamente estas coisas [a ti, isto é, a Deus] ? Tudo vem de ti, e somente devolvemos o que veio das tuas mãos.

17:26 / Se Deus é o Criador, é Criador de seres humanos em particular. Com respeito a isto, Paulo tem duas coisas a dizer. Primeira, de um fez todas as nações dos homens. O grego não nos informa quem é ou o que é esse "um só". Muitas sugestões têm sido apresentadas: "de uma única natureza", "do mesmo Pai", "de um só homem" — e no fim tudo chega ao mesmo resultado. É provável que Paulo tivesse em mente "um só homem", Adão. Também há incerteza quanto ao sentido de todas. Estaria Paulo referindo-se a "toda a raça humana", ou deveríamos traduzir pan ethnos, "todas as nações", como se estivesse chamando a atenção à singularidade e distinção da raça humana enquanto afirma, simultaneamente, sua origem comum? Qualquer destas interpretações pode ter apoio bíblico, embora esta última seja a melhor tradução do grego (muitos atenienses desprezariam a ambas, visto que a idéia popular era que eles "brotaram do chão", isto é, eram indígenas, nativos da terra e, portanto, diferentes — superiores — aos demais). O resultado foi que as nações habitavam a terra toda. Todavia, até isto veio a ficar sob o âmbito do controle soberano de Deus, determinando-lhes os tempos já dantes ordenados (predestinados) e os limites da sua habitação. Aqui novamente enfrentamos mais de uma interpretação possível, dependendo de como vamos entender a primeira metade do versículo. Se é toda a raça humana que Lucas tem em mente, então os tempos significa o ciclo de estações de que Paulo havia falado em Listra (14:17), ou talvez os limites da vida de cada pessoa, e os limites de sua habitação, a saber, as fronteiras naturais entre mar e terra (veja esp. Salmo 74:17; cp. Jo .18:8-11; Salmo 105:5-11). Todavia, se a referência é, como nós supo­mos, a todas as nações, então a idéia diz respeito às épocas pertencentes a cada nação em particular — sua ascensão e queda, bem à maneira de Jesus referir-se aos "tempos dos gentios" (Lucas 21:24) — e os lugares onde estas nações se encontram.Desse modo, Paulo parou de falar de Deus como o Criador, passando a falar dele como o Senhor da história, talvez deliberadamente afirmando sua própria crença na providência divina, em oposição ao fatalismo dos ouvintes estóicos.

17:27 / Não só é Deus o Criador da vida, mas é também a fonte e o objetivo final das aspirações humanas, porque ele fez os seres humanos para que o buscassem e... o pudessem achar. Esta asserção tem sido entendida como a busca filosófica da verdade, mas o pensamento de Paulo continua firmemente enraizado no Antigo Testamento, com suas referências à procura e ao encontro de Deus (p.e., Salmo 14:2; Provérbios 8:17; Isaías 55:6; 65:1; Jeremias 29:13). Entretanto, o apóstolo emprega unia expressão que tem conotações filosóficas — "tatear, tentando alcançá-lo". Platão a havia empregado a respeito de vagas premonições da verdade. Num sentido semelhante, embora mais concreto, ela ocorre vái ias vezes na LXX a respeito do apalpar nas trevas (Deuteronômio 28:29; Jo 5:14; 12:25; Isaías 59:10). Todavia, a palavra mesma apenas significa "tocar", como em Lucas 24:39 e 1 João 1:1, e esse deve ter sido 0 sentido que Paulo tinha em mente, a saber, a respeito de um tipo de certeza palpável da presença de Deus, que está em toda a parte, e sempre disponível, num mundo que ele próprio criou (cp. Romanos 1:20). É o propósito de Deus que nós o busquemos, mas os verbos "buscar", "tatear", e "achar" estão conjugados de tal modo (no optativo) que mostram que as intenções de Deus não se realizaram. Isto se deve ao pecado, mas Paulo não o diz aqui. Seu objetivo aqui é focalizar não o problema do pecado, mas a possibilidade de conhecer a Deus. Afirma o apóstolo, portanto, que Deus não está longe de cada um de nós. Isto poderia ter sido dito por um estóico, não, porém, com o significado intencionado por Paulo. Os estóicos viam Deus (a alma do universo) como estando imanente em todas as coisas, e no sentido de "não longe de nenhum de nós". Todavia, o Deus de que Paulo falava, embora estivesse perto, não era idêntico à sua criação e tampouco impessoal, como dizia a filosofia estóica, mas sim o Deus vivo, pessoal, do Antigo Testamento (cp. p.e., Salmo 145:18; Jeremias 23:23s.). Observe o uso que Paulo faz do singular: cada um de nós. Faz-nos lembrar de novo que esse Deus procura estabelecer relacionamentos pessoais (cp., p.e., 3:26). Que diferença, em relação à idéia dos estóicos, da união com a Razão Universal!

17:28 / A fim de enfatizar e esclarecer seu ponto de vista, Paulo menciona alguns versos de poesia grega. NIV e ECA traduzem-nos na pressuposição de tratar-se de duas citações. Entretanto, a primeira cita­ção não é mencionada como tal. As palavras não têm a cadência, nem a métrica da poesia. E melhor entender que se trata de alusão, em vez de citação direta. Há alguma dificuldade em identificar-lhe a fonte. Um autor siríaco do nono século d.C, Ishodade, atribui o poema a Minos, de Creta, e identifica as palavras de Paulo em Tito 1:12 como citação da mesma fonte. Mas Clemente de Alexandria tem certeza de que a citação de Tito é de Epimênides, que também era de Creta (Stromateis 1.14.59). Clemente é tido de modo geral como estando certo; Ishodade teria feito confusão, pelo fato de Epimênides ter escrito a respeito de Minos (veja BC, vol. 5, pp. 246-51). Seja como for, os versos assinalam o ponto nevrálgico: Deus está perto, visto que dependemos dele em tudo. É claro que Paulo estava "vendo" nos versos suas próprias idéias. Nenhum dos dois fala de seu Deus. O segundo verso assevera que somos também sua geração (gr. genos), mas a idéia estóica era que a humanidade é "uma faísca de Deus", enquanto o pensamento paulino era que a humanidade foi feita "à imagem" de Deus (a única imagem legítima num mundo de idolatria). Esse segundo verso é citação de uma obra do poeta ciliciano Arato (m. cerca de 315 a.C), intitulado "Phaenomena". Entretanto, um verso semelhante encontra-se em Cleantes (cerca de 330-231 a.C). A referência de Paulo a vossos poetas (plural) pode ser o reconhecimento desse fato, a menos que a referência movimente-se para trás e para a frente, no tempo, de modo que inclua as palavras de Epimênides.

17:29 / Visto que os seres humanos são semelhantes a Deus e dele dependem, é absurdo pensar que a divindade possa ser retratada pela arte humana. As obras de arte dependem da imaginação do artista; são obras inanimadas. Estes dois fatos revelam que as obras são inferiores à pessoa que as criou. Que se dirá, então, do Deus que criou os seres humanos! O pensamento de Paulo expressa-se melhor na frase: "Deus é espírito" (João 4:24), porque o que é espiritual não pode ser representado por uma imagem semelhante ao ouro, ou à prata, ou à pedra esculpida (cp. Salmo 115:4ss.; Isaías 37:19; 40:19; 46:7ss.). Todavia, ao mesmo tempo em que combate a idolatria, Paulo está preocupado com conciliar seus ouvintes. Observe como o apóstolo usa a primeira pessoa — não "vós", mas nós nós... não havemos de pensar dessa maneira.

17:30-31 / O sermão termina com a advertência de que todos devem abandonar seus maus caminhos (v. 30), isto é, deixar a idolatria, visto que o Criador é também Juiz. Até agora Deus, não levando em conta Oi tempos da ignorância... mas a partir desse instante cessa a magna­nimidade (cp. 14:16; Romanos 3:25). (Nota: Paulo não disse que no passado não houve retribuição divina pelo pecado. Todavia, o passado luivia sido relativamente desculpável pela ignorância). Por trás daquela conjunção e advérbio do v. 30 (mas... agora) está o conceito familiar dfl nova era inaugurada por Cristo (veja as notas sobre 1:3 e 2:17ss.). 1 >cus, mediante Cristo, havia resolvido definitivamente o problema do pecado. Todavia, por essa exata razão ele coloca a humanidade toda sob nina nova responsabilidade. A oferta da salvação em Cristo carrega consigo a ameaça do julgamento, se tal oferecimento fosse recusado. Julgamento e salvação caminham de mãos dadas; Cristo foi investido dos dois direitos; ambos expressam a justiça de Deus. Isto levou Paulo a declarar que Deus determinou um dia em que com justiça há de julgar o mundo (v. 31; veja a disc. sobre 1:10) — uma referência ao Salmo 96:13 — e nomeou para isso um homem que destinou. De que outra forma poderia um Deus que é Espírito revelar-se como juiz e aparecer num tribunal? Além do mais, o Senhor deu certeza (gr. pistis, "fé", "promessa solene", "penhor" disso [dessa determinação]... ressuscitando-o dentre os mortos [v. 31]). A escrever homem não nos parece provável que Paulo tivesse em mente a humanidade de Jesus. Ele deve ter tido em mente o Filho do homem cuja ressurreição havia declarado sua filiação divina (cp. Romanos 1:4; veja as disc. sobre 6:12 e 7:56). É claro que Paulo não poderia ter usado essa frase aqui. "Filho do homem" nenhum sentido teria para os atenienses.

17:32-34 / É possível que até este momento Paulo houvesse ganho o auditório todo. Todavia, tão logo ele se pôs a falar sobre arrependimento (que implica pecado) e julgamento (que implica responsabilidade moral) e a ressurreição e volta de Jesus (fatos que contrariam todas as idéias gregas sobre morte e imortalidade; veja a nota sobre v. 18 e Bruce, Book [Livro], pp. 363s.), Paulo perdeu seu auditório, ou a maior parte dele. Alguns zombaram, outros adiaram a decisão (v. 32), e só um pequenino punhado reagiu positivamente ao evangelho, dentre os quais Dionísio, o areopagita (v. 34). Segundo a tradição, ele se tornou o primeiro bispo de Atenas (Eusébio, Ecclesiastical History 3.4.10 e 4.23.3). Outra con­vertida foi uma mulher por nome Dâmaris. Têm sido levantadas algumas conjecturas a respeito dela: que deveria ser estrangeira, ou uma mulher de classe social inferior, visto que nenhuma mulher ateniense respeitável teria ido à Agora para ouvir Paulo. Mas a conversão dela poderia ter acontecido mediante a sinagoga, ou sob outra circunstância; o v. 34 não expressa necessariamente o resultado dessa reunião.

Além dessas duas pessoas cujos nomes nos são dados, lemos que com eles outros se converteram (v. 34), mas ficamos com a impressão de que não foram muitas as pessoas, e nenhuma menção encontramos no Novo Testamento de alguma igreja nessa cidade. Na verdade, mais tarde, quando Paulo refletia acerca de seu trabalho nessas regiões, mencionou "a família de Estéfanas" como os primeiros convertidos da Acaia, os quais aparentemente eram coríntios (1 Coríntios 16:15). Paulo havia escrito aos coríntios, e poderia ter dito apenas que Estéfanas havia sido o primeiro naquela região da Acaia; mas permanece o fato de que não há evidências de uma igreja em Atenas. Isto levou alguns autores a sugerir que a determinação de Paulo a nada saber ("nada me propus saber") ao chegar a Corinto, "senão a Jesus Cristo, e este crucificado" (1 Coríntios 2:ls.) teria sido uma decisão tomada após sua pregação em Atenas "com sublimidade de palavras" e "em palavras persuasivas de sabedoria humana" que nenhum resultado produziram. Devemos duvi­dar, contudo, de que, em geral, a pregação do apóstolo tenha sido diferente de sua pregação em Corinto, ou noutra cidade qualquer, embora os resultados em Corinto tenham sido sem dúvida melhores. Acima de Indo, o que Paulo aprendeu de sua experiência em Atenas foi que "o mundo não conheceu a Deus por sua própria sabedoria" (1 Coríntios 1:21).

 

Notas Adicionais # 47

17:18 / Filósofos epicureus e estóicos: O fundador da escola estóica de lilosofia foi Zenon de Cítion, em Chipre (335-263 a.C). Tomaram o nome de Sloa Poikile na Agora de Atenas, onde Zenon gostava de lecionar. Seu ensino foi aumentado e sistematizado por Crisípo (c. 280-207 a.C), o "segundo fundador" do estoicismo. Mais tarde, incorporaram-se-lhe alguns elementos do platonismo. A primeira lição do ensino de Zenon era que o filósofo deveria praticar a virtude. Para ser virtuoso, contudo, ele precisava ter sabedoria, e a única sabedoria verdadeira era a obtida através dos sentidos. E visto que os lentidos só reagem ao que é material, para os estóicos só nas coisas materiais é i|iic se podia encontrar a realidade. Eram, pois, materialistas. Criam na existência de Deus; contudo, Deus mesmo era algo material, em certo sentido. Às vezes pensavam em Deus como uma deidade pessoal, amorosa. Todavia, era mais comum igualarem Deus à natureza, e assim ensinavam que todas as coisas se produzem em Deus e por fim são absorvidas de novo por Deus. Isto incluía os seres humanos, que seriam "centelhas do divino" de almas imortais, mas que só sobreviviam à morte no sentido que voltavam à Alma do universo para serem reabsorvidos pelo fogo do Espírito divino. Assim, os estóicos, sendo panteístas, criam que os deuses da mitologia popular nada mais eram senão expressões da Razão universal. Ensinavam que o universo era regido por leis imutáveis. Eram, portanto, fatalistas, e criam que a única maneira de sermos felizes era o permanecer em harmonia com o curso inevitável dos acontecimentos. Estavam conscientes da existência do mal físico e moral neste mundo. Ensinavam que embora os virtuosos pudessem sofrer, nenhum mal real poderia suceder-lhes, e miilium verdadeiro bem aos perversos. Um estóico eram alguém que procurava l>oi Iodos os meios elevar-se acima das circunstâncias da vida, acima da paixão humana, a ser "auto-suficiente" — tornar-se ele próprio "um rei", ou melhor, "um deus".

os epicureus receberam seu nome de Epicuro, nascido em 341 a.C, na ilha de Samos. O ideal humano deles era atingir um estado em que o corpo ficava livre de toda a dor; e a mente, de toda perturbação. O ideal deles era o distanciamento, não a indulgência, como nos sugere hoje a palavra "epicurista" (dado aos prazeres sensuais). Assim, os seres humanos tornam-se a medida de todo o bem para si mesmos, e os sentidos humanos o meio pelo qual esse bem é avaliado. Também eram materialistas, mas de modo diferente dos estóicos, pois ensinavam que o mundo havia sido formado pelo amontoado casual de átomos (teoria derivada de Demócrito e aprendida por Epicuro mediante seu discípulo Nausifanes). Portanto, os deuses nenhuma atuação tiveram na criação. Na verdade, os deuses nenhuma atenção davam ao mundo e a seus habitantes, mas seguiam à perfeição em uma vida de distanciamento, que era o ideal epicurista. Assim, os epicureus eram ateus práticos, embora não negassem a existência dos deuses — nós temos uma idéia a respeito deles, portanto, eles devem existir (os átomos de que os deuses também são feitos atiram "cascas" que atingem os sentidos da mente humana). Os epicureus buscavam a felicidade numa vida simples — na restrição dos sentidos, e não no esmagamento deles, como os estóicos tentavam fazer. Acreditavam que a morte trazia uma dispersão dos átomos constituintes da pessoa, que assim deixava de existir.

17:19 /Tomando-o, o levaram ao Areópago: NIV interpreta o grego como significando que levaram Paulo perante o conselho, e não simplesmente ao lugar chamado Areópago ("levaram-no a uma reunião do Areópago"). A construção da frase grega (epi com o acusativo) é o que esperaríamos, quanto a levar uma pessoa perante uma junta oficial como esta (cp. 16:19; 17:6; 18:12); a menção de Dionísio, o areopagita, no v. 34, parece confirmar este ponto de vista. Na verdade, a referência no v. 22 ao apóstolo de pé "no meio do Areópago" (assim diz o grego) seria estranha, se o sentido da palavra Areópago fosse a colina, e não o conselho.

17:23 / Um altar em que estava escrito: AO DEUS DESCONHECIDO: O viajante grego Pausânias (segundo século d.C.) conta-nos como ao longo da via Hamaxitos erguiam-se a intervalos regulares "altares a deuses a que se atribuíam nomes e a deuses desconhecidos" (Description of Greece 1.1.4). Mais ou menos à mesma época, Filostrato observou o mesmo fato (Life ofApollonius ofTyana 6.3.5). É provável que Jerônimo tinha em mente tais comentários ao sugerir que Paulo substituiu o plural "deuses" pelo singular porque isto se encaixava melhor em seus propósitos (Commentary on Titus 1:12). É provável que seja isso mesmo que tenha acontecido, e talvez nenhuma dificuldade haja em conceder-se ao pregador tal licença. Contudo, não devemos descartar a possibilidade de a inscrição estar redigida no singular. É evidente que havia vários altares desse tipo, de modo que, se mais de um deles fosse dedicado a uma deidade em particular, podia-se referir a tais altares de modo abrangente como "altares aos deuses desconhecidos" (veja Bruce, Booky. 356).