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Atos 20:13-38
Atos 20:13-38

Atos 20.13-38: Paulo Despede-se dos Presbíteros Efésios 

 

Nesta seção encontramos o único exemplo em Atos de uma pregação de Paulo a cristãos (cp. 14:22; 18:23). Nela vemos o apóstolo como pastor e amigo dos efésios; nenhuma outra passagem neste livro mostra sentimentos mais profundos do que esta. Uma extraordinária vivacidade cerca este discurso, cuja razão é óbvia: é o único em Atos de que podemos ter razoável certeza de que o autor do livro ouviu. Apesar disso, Lucas o escreveu em seu próprio estilo. Nesse discurso, mais do que em qualquer outro, podemos captar as marcas de Lucas; todavia, por trás delas ressoa, com clareza, a voz de quem discursou. O conteúdo é totalmente paulino. Quanto à forma, é um tipo de discurso de despedida comumente encon­trado, no qual Paulo adverte seu auditório quanto às dificuldades que estão à sua frente, colocando-se a si mesmo como padrão de conduta para os crentes (cp., p.e., Gênesis 47:29-50:14; Deuteronômio 1-3; Josué 23:1-24:32; 1 Samuel 12; Tobias 14:3-11; João 13-16; 1 Timóteo 4: lss.; 2 Timóteo 3:lss.). Reconhecidos estes fatos, quaisquer dúvidas quanto à autenticidade da pregação, com base em que Paulo não se teria promovido dessa forma, ficam descartadas (cp. também 1 Coríntios 1:11). Todavia, ainda há alguns que argumentam que esse discurso é elogiativo demais para ser da lavra original de Paulo, e que Lucas deve tê-lo composto por si mesmo em defesa do apóstolo, contra os detratores que adiante vão aparecer — os dos dias de Lucas, não os dos dias de Paulo. Entretanto, o que não faltava para Paulo em seus próprios dias eram detratores (cp., p.e., 2 Coríntios 10-13; 1 Tessalonicenses 1-2). Ainda que os tais ainda não houvessem aparecido em Éfeso, a experiên­cia do passado lhe teria ensinado que logo apareceriam, de modo que este discurso (em parte) é uma forma de ele prevenir seus ouvintes quanto a essa eventualidade.

20:13 / No dia seguinte os outros tomaram um navio para Assôs, mas Paulo iniciou sua viagem por terra com a intenção de tomar o navio naquela cidade. Assôs fica ao sul de Trôade, a alguns quilômetros a leste do Cabo Lectum, no golfo de Adramítio. A cerca de sessenta e quatro quilômetros mais longe, a leste, fica a própria Adramítio (cp. 27:2). Uma estrada romana ligava Trôade a Assôs, provendo uma rota mais curta e mais rápida para o apóstolo (cerca de trinta e dois quilômetros) do que se ele houvesse ido com os outros de navio. Ele talvez tenha preferido essa opção para ficar mais algum tempo com os crentes de Trôade.

20:14-16 / Conforme planejado, Paulo encontrou o navio em Assôs, embora o tempo imperfeito do verbo levanta a possibilidade de o após­tolo tê-lo visto ainda em pleno trajeto ("ele veio encontrar-se conosco;" ECA: logo que nos alcançou em Assôs), sendo recebido a bordo de imediato. Seja como for, de Assôs navegaram para Mitilene (cerca de quarenta e oito quilômetros de Assôs), a principal cidade na ilha de Lesbos, onde um porto natural muito amplo fazia dela um lugar onde se parava com tranqüilidade para passar a noite, de modo especial se se tratasse, como parece, de uma embarcação costeira de pequeno porte. No dia seguinte ficaram defronte da ilha de Quios. Um estreito de cerca de oito quilômetros de largura, pontilhado de ilhotas, separa Quios da extremidade de uma longa península que se projeta da costa asiática, tendo Esmirna (Izmia) ao norte e Éfeso ao sul. O navio demorou-se durante a noite nesse canal pitoresco, ou ancorado ao largo da praia, ou num determinado ponto no continente; no dia seguinte aportamos a Samos (v. 15) e ali lançaram âncora durante a noite, ou talvez, como implica o texto ocidental, apenas "chegaram perto" da ilha a fim de passar a noite em Trogílio, cidade continental do outro lado de Samos. Já haviam deixado Éfeso para trás, e no dia seguinte chegaram à vizinha cidade do sul, Mileto.

Mileto era a cidade mais distante ao sul, de todas as grandes cidades iônicas (gregas) da costa da Ásia Menor. Pertencia à região de Caria, que agora fazia parte da província romana da Ásia. A cidade ficava num promontório que se projetava da praia sul do golfo de Latmian, que formava o estuário do rio Meânder. Nos tempos romanos Mileto ainda era cidade de alguma importância, embora Éfeso a houvesse eclipsado havia muito tempo tanto comercial como politicamente. Sabe-se que Mileto havia abrigado uma comunidade judaica; todavia, não sabemos se Paulo pregou nela, ou se a igreja foi estabelecida ali durante os anos de sua estada na Ásia.

20:17 / Mileto era um lugar de parada natural para os navios costeiros cuja rota fosse o sul, e suficientemente perto de Éfeso para que Paulo convocasse os anciãos. O verbo transmite ao mesmo tempo um senso de solicitude ansiosa e autoridade. É evidente que Paulo podia contar com uma estada ali de alguns dias, se levarmos em conta o tempo gasto no desembarque, o despacho do mensageiro e a viagem dos anciãos a Mileto; a reunião em que o apóstolo lhes falou não poderia ter ocorrido senão no terceiro dia.

20:18 / A chegada dos anciãos, Paulo lhes falou, de início, de seu próprio ministério. Este lhes era bem conhecido, embora ele tivesse em mente não apenas a obra em Éfeso, mas na província toda. Todavia, a maior parte de seu tempo ele passou em Éfeso, de modo que eles tinham razão especial para expressar gratidão pelo seu ministério. Daí a ênfase no grego no pronome pessoal vós, na frase vós bem sabeis, desde o primeiro dia...como em todo esse tempo me portei no meio de vós. Esse apelo à memória do povo é traço familiar da fala de Paulo (cp. Filipenses 1:5; 4:15; Colossenses 1:6; 1 Tessalonicenses 2:ls, 5, lOs), embora o verbo "saber" seja característica de Lucas.

20:19 / O ministério paulino havia sido marcado pelo auto-sacrifício. As muitas lágrimas não foram derramadas por causa de suas dificulda­des (lit., "provações" ou "tentações"), que foram, ao contrário, uma fonte de alegria, mas pelo sofrimento alheio — por causa dos irmãos "em Cristo" que enfrentavam aflições (cp. v. 31; Romanos 9:2; 2 Coríntios 2:4; Filipenses 3:18)), e por causa das pessoas sem Cristo que viviam num mundo "sem esperança e sem Deus" (Efésios 2:12). Podemos entender a referência paulina a lágrimas de modo literal; Paulo não era um estóico para quem a insensibilidade seria uma virtude (veja a nota sobre 17:18). Ele vinha servindo ao Senhor com toda a humildade num mundo em que a humildade era considerada falta, não virtude — algo adequado a um escravo apenas (as palavras "toda" e "humildade" são típicas de Paulo; cp. Efésios 4:2; Filipenses 2:3; Colossenses 2:18, 23; 3:12). No entanto, Paulo via a si mesmo como um "escravo do Senhor" (a expressão de NIV e de ECA, servindo ao Senhor perde a força da língua grega; quanto à expressão "ser um escravo, servir" cp. Romanos 12:11; 14:18; 16:18; Efésios 6:7; Filipenses 2:22; Colossenses 3:24; 1 Tessalonicenses l:9s.; quanto ao substantivo "servo", Romanos 1:1; Gálatas 1:10; Filipenses 1:1; Tito 1:1). A referência às ciladas dos judeus faz-nos lembrar que há muita coisa nesta história que Lucas não nos narrou. O próprio Paulo preenche algumas dessas lacunas (1 Corín­tios 15:32; 2 Coríntios 1:8-10; ll:23ss.;cp. Atos 9:23; 20:3; 23:12; 25:3; 1 Tessalonicenses 2:14-16 quanto a outras ciladas).

20:20-21 / O ministério de Paulo havia sido abrangente — tanto aos judeus como aos gregos (v. 21) — outra expressão paulina (cp. Roma­nos 1:16; 2:9, 10; 3:9; 1 Coríntios 1:24). O apóstolo havia pregado em público (na sinagoga e na escola de Tirano, 19:8, 9) e em particular (p.e., à igreja que se reunia na casa de Áquila e Priscila, 1 Coríntios 16:19). A pregação paulina havia incluído "palavras duras" bem como "palavras de conforto", advertindo seus ouvintes de que eles deviam se converter a Deus, arrepender-se e ter fé em nosso Senhor Jesus Cristo (v. 21; veja a disc. sobre 2:38 quanto a um apelo semelhante, e a disc. sobre 2:40 quanto ao verbo "advertir", ou melhor, "testificar"). Alguns comentaris­tas vêem uma figura de linguagem (quiasmo) onde os termos são inver­tidos no v. 21: a pregação do arrependimento dirigida aos gregos (cp. Gálatas 4:8s.; 1 Tessalonicenses 1:9) e a fé, aos judeus. É claro que Paulo punha ênfase diferente ao dirigir-se a grupos étnicos diferentes, e talvez seja correto caracterizar essas duas ênfases diferentes dessa maneira. Entretanto, todas as pessoas, quer se trate de gregos, quer de judeus, precisam arrepender-se e crer (cp. Romanos 1:16; 10:9-13), sendo pre­ferível que vejamos nesse versículo um resumo da pregação de Paulo a todos (cp. 14:15; 17:30; 26:20). Em suma, o apóstolo "nada deixou de anunciar" que lhes seria útil para a salvação (v. 20; cp. 1 Coríntios 10:33; 2 Coríntios 4:2; Gálatas 4:16). O verbo (que se encontra de novo no v. 27 e Gálatas 2:12 e em nenhum outro lugar no Novo Testamento, exceto em Hebreus 10:38), tem o sentido de "retirar-se ou recolher-se por temor de alguém, ou por consideração", mas a pregação de Paulo nada ficava devendo ao temor ou ao favor relacionados a outras pessoas. Sua única preocupação era expressar "todo o conselho de Deus" (v. 27).

20:22-24 / Tanto quanto Paulo podia ver, seu trabalho em Éfeso estava no fim; seus pensamentos voltavam-se agora para seu segundo tema, seu ministério futuro. Estava a caminho de Jerusalém compelido pelo Espí­rito ("amarrado pelo Espírito", diz o grego, v. 22). Alguns entendem que a referência é ao Espírito Santo (como NIV e ECA); outros entendem que diz respeito a seu próprio espírito humano. É possível que o fato de o Espírito Santo ser mencionado no versículo seguinte (23) favoreça esta segunda opinião, que é também a nossa, embora no final de contas venha a ser tudo igual. O ponto é que Paulo sentiu-se (divinamente) compelido a ir. O tempo sugere que ele havia-se sentido assim durante algum tempo, enquanto o verbo propriamente dito ("amarrar") pode sugerir um indício de seu destino. O Espírito lhe havia advertido de que prisões (lit, "algemas") e tribulações o aguardavam em Jerusalém (v. 23; estes mesmos substantivos encontram-se juntos em 2 Coríntios 1:8 e Filipenses 1:17), e Paulo deveria ter sentido que, com efeito, já era um prisio­neiro. Comparada com 19:21, esta passagem representa antecipadamente a percepção de Paulo daquilo que o aguardava, embora ele ainda não tivesse nenhuma idéia do que lhe aconteceria, e onde. A única coisa que ele sabia era que o Espírito o advertira de que em cada cidade perigos o aguardavam (cp. 21:4, 11). Não é que Paulo considerasse sua vida preciosa demais. A incerteza poderia tê-lo perturbado, mas seu principal interesse era que [eu] cumpra com alegria a minha carreira (v. 24; cp. Romanos 15:30ss.) —a metáfora familiar de Paulo sobre o atleta que compete nos jogos (veja também a disc. sobre 24:16; cp. 1 Coríntios 9:24; Gálatas 2:2; Filipenses 3:12; 2 Timóteo 4:7) — ao proclamar aos gentios e aos reis e ao povo de Israel o evangelho da graça de Deus (v. 24; cp. 9:15; Gálatas 1:15s.). Este era muito caracteristicamente o ministério (gr. diakonia), "serviço" de um apóstolo (cp. 1:17, 25; 6:4; 21:19; Romanos 11:13; 2 Coríntios 4:1; quanto à graça, veja a disc. sobre 13:43).

20:25 / Paulo tinha certeza de que os efésios nunca mais o veriam (cp. v. 38). Devemos entender, contudo, que isto não passava de mera opinião humana, baseada na lei das probabilidades, visto que o Espírito só o havia advertido a respeito de "prisões e tribulações" (v. 23). O fato é que talvez o tivessem visto de novo (2 Timóteo 4:20). Seja como for, o cuidado pastoral da igreja efésia deixava de ser de sua principal responsabilidade, mas ficava a cargo dos presbíteros, de modo que seu terceiro tema foi o ministério que cabia a eles. Paulo acrescenta agora uma exortação, além do exemplo de sua própria conduta entre os efésios — uma admoestação concentrada nos versículos 26-30; o exemplo é mencionado aqui e nos vv. 31-35. Quanto a reino, veja a disc. e as notas sobre 1:3 e a disc. sobre 8:12.

20:26-27 / A alusão se refere ao atalaia de Ezequiel 33:1-6, usado como símbolo de responsabilidade espiritual. Paulo achava que havia cumprido sua missão entre os efésios, de tal modo que se alguém se desviasse, a culpa não seria dele, de Paulo. Literalmente, ele se declarou "inocente do sangue de todos" (v. 26; veja a disc. sobre 18:6). O adjetivo "inocente" ("limpo", em NIV) encontra-se sete vezes nas epístolas de Paulo, e somente aqui e em 18:6 (sempre como se havia sido palavra do próprio apóstolo) nos escritos de Lucas. A palavra "hoje" (v. 26, "neste mesmo dia", GNB) também pode ser atribuída a Paulo (2 Coríntios 3:14; cp. Romanos 11:8 também). Paulo se considerava "inocente" porque "nada deixara de anunciar, e ensinar" ao proclamar-lhes todo o conselho de Deus (v. 27; cp. Efésios 1:11; 3:4; veja a disc. sobre 2:23). O ministério de Paulo havia sido "completo".

20:28-29 / Os anciãos também deveriam ter o cuidado de ser "inocen­tes" no mesmo sentido. Olhai por vós, exorta Paulo, porque somente quando os líderes permanecem fiéis a Deus eles podem esperar fidelidade da parte da congregação. E interessante a posição dos anciãos face à congregação. E evidente que os anciãos faziam parte do povo de Deus e, no entanto, em certo sentido ficavam à parte, visto que deviam "apascentar" ("olhar por") os demais (v. 28). Ninguém lhes havia dado essa tarefa, senão o próprio Espírito. É digno de nota que o verbo constituiu (v. 28) esteja na voz mediana, como também o verbo compa­rável no relato do chamamento de Paulo para o serviço missionário, em 13:2; o sentido é que o Espírito os havia chamado para si mesmo e para seu próprio propósito, não para os propósitos deles. Não há menção aqui, nem no capítulo 19, de esses presbíteros terem sido ordenados formal­mente para o cargo que ocupavam mediante a imposição de mãos. Em vez de chamar-lhes a atenção para a unção humana (cp. 2 Timóteo 1:6), Paulo leva-os a lembrar-se da vocação divina, pressuposta na ordenação humana. O propósito de Paulo era exortá-los quanto à seriedade da obra que enfrentavam. A fim de sublinhar bem esse fato, Paulo relembrou-lhes que a igreja pertencia a Deus, pois ele a comprou com o seu próprio sangue (v. 28). A frase a igreja de Deus é singular nos escritos de Paulo (cp., p.e., 1 Coríntios 1:2), mas o pensamento por trás dessa parte do versículo remete-nos à noção veterotestamentária de Deus como reden­tor de seu povo (Salmo 74:2; Isaías 43:21). O substantivo cognato desse verbo ("a qual ele comprou") encontra-se em Efésios 1:14 ("propriedade de Deus"), e vem associada, à semelhança do verbo neste versículo, à idéia de redenção. Tal redenção se efetuou ao custo do "próprio sangue" de Cristo (v. 28). Segundo as palavras textuais, a referência parece mencionar o sangue do próprio Deus, expressão singular no Novo Testamento. Todavia, muitos há que interpretam o grego como signifi­cando "o próprio Filho" de Deus (o grego permite isso, cp. Romanos 8:32). Quanto a este ponto de vista, é digno de nota que o v. 28 inclui uma referência às três pessoas da Trindade, em suas diferentes relações com a igreja. Além de tudo, este versículo é uma das mais claras assertivas concernentes à doutrina da expiação (veja as notas sobre 8:32s. e a disc. sobre 13:39).

Como pessoas a quem Deus outorgou a responsabilidade de vigiar a igreja, Paulo chama os anciãos de bispos (supervisores, v. 28), termo que também se encontra em suas cartas (Filipenses 1:1; 1 Timóteo 3:1 s.; Tito 1:7; a mesma palavra é empregada para Jesus em 1 Pedro 2:25). A natureza da tarefa deles é ilustrada por uma metáfora pastoral. A igreja é o rebanho (v. 28), imagem familiar a respeito do povo de Deus tanto no Antigo como no Novo Testamento; os anciãos são bispos para apascentardes a igreja (v. 28); o perigo que ameaça o rebanho são lobos cruéis que não pouparão o rebanho (v. 29). A idéia diz respeito a mestres heréticos, de modo especial os judeus cristãos de linha dura, que chegariam depois que Paulo houvesse partido, e que desencaminhariam o povo (veja a disc. sobre 21:21). Isto havia acontecido na Galácia e em Corinto, em que se havia pregado "outro evangelho" (2 Coríntios 11:4; Gálatas l:6ss.), havendo ameaças noutras cidades (cp. Romanos 14:1-15:13; Filipenses 3:2ss.). O verbo "poupar" encontra-se seis vezes nas cartas de Paulo, e fora delas apenas em 2 Pedro 2:4-5.

20:30 / No versículo anterior, o perigo vinha de fora. Aqui, Paulo fala de um perigo interno—de mestres que se levantariam dentre os próprios efésios a fim de seduzir a congregação. A experiência lhe havia ensinado a temer pelo rebanho, e a história tem mostrado que ele tinha razão, que seus temores eram justificados (cp. 1 Timóteo 1:3, 20; 2 Timóteo 1:15; 2:17; 3:8, 13; 1 João 2:18s.; 2 e 3 João). O desejo de tais mestres era atrair os discípulos após si — um contraste que fica subentendido com o chamado para que o discípulo siga a Jesus. Esse verbo significa "romper aquilo a que a pessoa está ligada".

20:31 / A metáfora pastoral prossegue e Paulo exorta os anciãos: portanto, vigiai. Eles podiam reanimar-se pelo exemplo pessoal de Paulo. Durante três anos (número arredondado; veja a nota sobre 19:10), o apóstolo lhes havia ensinado noite e dia... com lágrimas (cp. v. 19). A ordem das palavras noite e dia talvez seja proposital, como pensam alguns, a fim de enfatizar seu trabalho incansável; sendo mais provável, no entanto, que expresse seu padrão normal de trabalho, que começava antes do nascer do sol (noite) estendendo-se até cerca do meio dia, quando a maior parte das pessoas fazia um repouso ("siesta"), enquanto Paulo pregava na escola de Tirano (veja a disc. sobre 19:9).

20:32 / Finalmente, Paulo os encomenda a Deus e à palavra da sua graça (veja a disc. sobre 13:43). O genitivo aqui é objetivo. Trata-se da "mensagem a respeito da graça". Esta mensagem pode edificar o crente, isto é, levar o crente à maturidade em Cristo (cp. 1 Coríntios 3:9-15; Efésios 4:12) e dar-lhe herança entre todos os que são santificados (cp. Romanos 8:17). É linguagem do Antigo Testamento, que fala da herança de Israel primeiramente na terra de Canaã, mas além dessa, herança do próprio Deus (cp., p.e., Salmo 16:5). Todavia, esses temas são caracteristicamente paulinos (quanto a "edificação", cp. Efésios 2:20s.; 4:12, 16, 29; quanto a "herança", cp. Efésios 1:14, 18; 5:5). Observe que os líderes, não menos do que o resto da congregação, estão sujeitos à autoridade da mensagem de Deus (as Escrituras).

20:33-34 / O discurso aproxima-se do final e Paulo de novo coloca-se a si próprio perante os anciãos como exemplo, mediante sua conduta entre eles. Longe de exigir recompensa, o apóstolo jamais cobiçou prata, nem ouro, nem vestes (v. 33; cp. 1 Coríntios 9:15-18). Estas eram formas tradicionais de riqueza no mundo antigo, e símbolos de "status" (cp. 1 Macabeus 11:24; Tiago 5:2s.). Paulo havia sido totalmente desin­teressado em seu ministério. Em vez de apoiar-se nos efésios quanto ao seu sustento, ele havia trabalhado a fim de garantir sua sobrevivência e a de seus companheiros. Estas mãos, disse ele, proveram o que me era necessário a mim, e aos que estão comigo (v. 34); podemos imaginar o apóstolo levantando as próprias mãos ao dizer isso (as palavras estão colocadas numa posição enfática no grego), numa demonstração de algo que os efésios sabiam muito bem. Dessas palavras inferimos que Paulo havia voltado a trabalhar em seu ofício com Áquila e Priscila (cp. 18:3; veja também Romanos 12:13; Efésios 4:28; Tito 3:14). Entretanto, embora não houvesse aceito remuneração da parte dos efésios, o apóstolo teria recebido ofertas ocasionais de outra igreja (cp. Filipenses 2:25; 4:16).

20:35 / A fim de dar apoio a seu tema, Paulo cita algumas palavras de Jesus não encontradas nos evangelhos, mas com as quais os efésios estavam familiarizados, recordando as palavras do próprio Senhor Jesus: Mais bem-aventurada coisa é dar do que receber. Paulo mesmo o reafirma com mais energia. Estamos sob a exigência divina de trabalhar duramente a fim de ajudar ao nosso próximo — pelo menos é o que fica implícito com as palavras é necessário (veja a disc. sobre 1:16).

20:36-38 / Quando Paulo terminou, todos oraram juntos. A solenidade do momento ficou marcada pelo fato de todos se porem de joelhos (veja a disc. sobre 7:60 quanto à postura de joelhos, e sobre 9:11, sobre a oração). Após uma cena comovedora, descrita de modo que nos faz lembrar do Antigo Testamento (cp. Gênesis 33:4; 45:14; 46:29), durante a qual todos se despediram com muito afeto (observe o tempo imperfeito, "persistiam em beijar", v. 37), os efésios acompanharam Paulo e os demais ao navio (veja a disc. sobre 15:3). Estes versículos nos mostram "um quadro do inimitável comando que Lucas tinha do elemento emo­cional, com que nos revela o maravilhoso poder do apóstolo de atrair afeto e devoção pessoais" (A. J. Mattill, Perspectivas, p. 81).

 

Notas Adicionais #54

Pode-se fazer uma interessante comparação entre a viagem descrita neste capítulo e no seguinte com a viagem feita por Herodes ao longo de Rodes, Cós, Quios e Mitilene, até o mar Negro (Josefo, Antigüidades 16.16-26).

20:16 / Paulo já tinha decidido passar ao largo de Éfeso: Pode parecer estranho que Paulo aparentemente houvesse ditado a rota do navio. É possível, no entanto, que ele houvesse alugado o barco. Por outro lado, esse texto pode significar apenas que ele tomara essa decisão em Trôade, e escolheu um navio que não pararia em Éfeso, mas navegaria direto a Mileto. Alguns eruditos entendem que esse texto significa que para Paulo as coisas estavam difíceis, e que visitar Éfeso seria coisa muito vexatória, como também que o apóstolo jamais obtivera sucesso nem na cidade nem na província (veja, p.e., W. Bauer, Orthodoxy and Heresy in Earliest Christianity. Este julgamento é duro demais, embora pareça que numa época posterior o apóstolo teria perdido o apoio dos crentes asiáticos (2 Timóteo 1:15). Martin vê a carta aos Efésios como "a última trincheira cavada por um representante de Paulo, bem conhecido de todos, em sua tentativa final de reconquistar a Ásia para o evangelho paulino mediante a publicação de uma coletânea dos ensinos do apóstolo" (p. 233).

20:28 / o Espírito Santo vos constituiu bispos: (gr. episkopos: no mundo secular esse título era dado a "oficiais locais ou oficiais de sociedades" cujo trabalho envolvia as finanças e a administração geral, mas nenhuma razão existe para pensarmos que esse título, conforme a igreja o utilizou, restringia as atividades às finanças. Em vez disso, parece que esse título foi usado no sentido bem mais amplo ilustrado pela LXX (p.e., 2 Reis 11;18; 2 Crônicas 34:12, 17; Neemias 11:9, 14; Isaías 60:17; 1 Macabeus 1:15), tendo sido enriquecido mediante associação com a idéia de cuidar-se de um rebanho (cp. 1 Pedro 2:25; 5:2; talvez também Números 27:16). Portanto, a tarefa do episkopos cristão "consiste em guiar a congregação estando sempre alerta e solícito (ambas as idéias estão contidas no verbo episkopein), com base na obra redentora de Cristo, o único a quem ela deve sua existência" (H. W. Beyer, episkopos, TDNT, vol. 2, p. 616).

Com o seu próprio sangue: o manuscrito favorece fortemente a seguinte tradução: "mediante o sangue, seu próprio" (Gr. tou haimatos tou idiou), que se pode traduzir por "seu (isto é, de Deus) sangue" ou "o sangue de seu próprio (Filho)". Deve-se preferir a segunda opção (veja a disc). Não existe um paralelo exato em Cristo ser chamado de "o próprio de Deus", mas compare Romanos 8:3 ls. e o emprego de Efésios 1:6 e da literatura cristã primitiva do título "amado".

20:35 / As palavras do próprio Senhor Jesus: Mais bem-aventurada coisa é dar do que receber: O emprego do pronome enfático, o próprio Senhor Jesus... elimina o ponto de vista segundo o qual o apóstolo estava apenas dando o sentido geral de algum ditado do Senhor, sem citá-lo de modo direto. Elimina também a idéia de que se trata de um provérbio grego de que a igreja se apropriou, falsamente atribuído a Jesus, embora se encontrem paralelismos dele na literatura grega (p.e., Tucídides, History ofthe Peloponnesian War 2.97'.4). A fórmula, "mais bem-aventurada coisa é..." (como aparece aqui no texto grego), é, evidentemente, uma fórmula distinta dos judeus.