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Atos 15:1-21
Atos 15:1-21

Atos 15.1-21: O Concilio de Jerusalém 

 

A recepção de gentios no seio da igreja sem a necessidade da circuncisão (esta daria a implicação de submissão à lei toda) pode ter sido assegurada após a conversão de Cornélio e seus amigos. Por essa época, até mesmo em Jerusalém, coluna da tradição judaica, os cristãos que se haviam reunido a fim de estudar essa questão concordaram que "até aos gentios Deus concedeu o arrependimento para a vida" (11:18), embora eles talvez pensassem que isso seria só um caso excepcional. Desde então as coisas mudaram dramaticamente; o fluxo rápido de gentios para dentro da igreja, tanto em Antioquia como nas cidades do sul da Galácia, levantou de novo a questão da sua admissão, ou com mais precisão, as condições mediante as quais deviam ser admitidos. Aceitar os 'devotos' ocasionais na igreja, pessoas que sentiam simpatia pelas doutrinas judai­cas, era uma coisa; mas era outra coisa bem diferente dar as boas-vindas a grande número de gentios que não tinham a menor consideração pela lei, e nenhuma intenção de guardá-la.

O ponto de vista dos judeus cristãos merece nossa compreensão. No que concernia à maioria, a lei continuava a ser elemento determinativo na vida deles. Não tinham um ensino claro do Senhor que fosse contrário a essa doutrina (cp., p.e., Mateus 5:18: Lucas 2:21; Gálatas 4:4). Sabemos agora que a igreja (no todo) chegou à conclusão de que Jesus abriu para nós um "novo e vivo caminho... pelo véu", isto é, pelo sacrifício de si próprio pelos nossos pecados, para que pudéssemos aproximar-nos de Deus ("cheguemo-nos... em plena certeza de fé", Hebreus 10:20ss.). Isto, todavia, não foi entendido de súbito, nem por todos, havendo muitos nessa época que continuaram a viver pela lei, e nenhuma razão viam para mudar de opinião (cp. 21:20). Portanto, teria sido com grande alarme, talvez até mesmo grande ira, estimulados pelas crescentes ondas de nacionalismo judaico, que alguns dos cristãos judeus (de Jerusalém, em sua maior parte) ouviram relatórios sobre o que estava acontecendo no norte. A questão em ebulição para eles era a seguinte: De que maneira os judeus cristãos que ainda se julgavam sob a lei podiam ter algum tipo de relacionamento com os que se julgavam livres da lei? A única resposta que tinham era que os gentios deviam aceitar o "jugo" da lei (v. 10), a saber, precisavam tornar-se judeus antes de receber o "status" de cristão integral. A questão chegou a seu ponto mais alto quando um grupo de judeus cristãos foi a Antioquia para advogar tal prática. A controvérsia que se seguiu conduziu à marcação de um concilio em Jerusalém que determinasse o fim dessa polêmica, no que diz respeito a Atos, embora ela permanecesse acesa, um assunto vexatório por muitos anos ainda. O concilio precisou pesar os dois princípios, o da liberdade e o da obediên­cia. O resultado foi o triunfo do amor.

Paulo, ao lado de outros, foi enviado pela igreja de Antioquia para representá-la nesse concilio. Isto levanta a questão sobre se esta teria sido uma das duas visitas a Jerusalém mencionadas em Gálatas l:18s. e em 2:1-10. Há acordo geral em que a primeira destas é a que está registrada em Atos 9:26-30, mas a opinião se divide quanto a se a segunda, de Gálatas 2:1 -10, é a descrita neste capítulo, ou a visita motivada pela fome, de Atos 11:30. Em apoio desta última idéia, salienta-se que esta foi a segunda visita após a conversão de Paulo, como também a visita de Gálatas 2:1-10 parece ser. Acrescente-se ainda que Paulo realizou essa visita "por causa de uma revelação" (Gálatas 2:1 s.) e que isto poderia ser uma referência à profecia de Ágabo, em Atos 11:27s. Feita essa identi­ficação, somos capazes de fazer uma ligação entre a visita de "alguns que tinham descido da Judéia" em Atos 15:1 com os que tinham vindo "da parte de Tiago" em Gálatas 2:12. Certamente é mais fácil pensar no incidente descrito em Gálatas 2:11-14 como tendo acontecido antes, em vez de depois do concilio, visto que revela um espírito muitíssimo contrário ao que marcou o final da reunião. Entretanto, "da parte de Tiago" só pode significar "de Jerusalém", de modo que tais pessoas seriam recalcitrantes, contrárias à decisão conciliar. Tampouco estava Paulo na carta aos Gálatas recontando todas as suas visitas, e o tipo de revelação que ele tinha em mente não era aquela que chega através de seres humanos, mas diretamente da parte de Deus (cp. Gálatas 1:1, 12).

Além de tudo isso, há outras dificuldades sérias na identificação de Gálatas 2:1-10 com Atos 11:30. Primeira, os apóstolos não são mencio­nados na passagem de Atos, enquanto em Gálatas Paulo diz que ele e Barnabé encontraram-se com Pedro, João e Tiago, o irmão do Senhor. Tampouco se pode supor, à luz daquelas passagens em que os anciãos ficam claramente diferenciados dos apóstolos (p.e., 15:4, 6; 16:4), que o termo "ancião" seja empregado em Atos 11:30 num sentido que abranja as duas categorias de obreiros. Segunda, não é fácil enquadrar Tito na visita de Atos 11:30, visto que Barnabé e Paulo são os únicos mencio­nados como delegados da igreja em Antioquia. Entretanto, Tito está incluído em Gálatas 2:1. Terceira, se o incidente de Gálatas 2:11-14 ocorreu antes do concilio, como se poderia supor nesta identificação, esperaríamos que a doutrina sob discussão fosse a circuncisão, e não as leis dietéticas. Quarta, é mais fácil imaginar Paulo e Barnabé, em sua obra entre os gentios, sendo confirmados como em Gálatas 2:1-10, depois da "primeira viagem missionária", e não antes desta. Tanto quanto nos é dado saber, antes dessa viagem o trabalho deles na Cilícia e na Síria não havia atingido mais profundamente os gentios, nem as sinagogas daquelas regiões visitadas. Há mais um aspecto ainda a considerar. Se a "primeira viagem missionária" foi após Gálatas 2:1-10, e não antes, a história de Atos 13 e 14, em que há a narrativa do interesse agudo dos apóstolos pelos gentios, pareceria inteiramente fora de propósito. Quinta, e última, há o problema de cronologia. A visita de Atos 11:30 não pode ser colocada depois de 46 d.C, quando a fome atingira seu clímax. Todavia, se Estevão havia sido martirizado nos últimos anos do mandato de governador de Pilatos, digamos, pelos meados dos anos trinta, que se enquadra também nas evidências relacionadas à estada de Paulo em Damasco (veja as notas sobre 7:60 e 9:23ss.), ainda que permitíssemos um cálculo abrangente para Gálatas seria impossível enquadrar os "três anos" e os "quatorze anos" dessa carta no tempo total exigido (Gálatas 1:18; 2:1). Relaciona-se a isto o fato de Paulo, em Atos 11:30, estar ainda subordinado a Barnabé, o que não parece acontecer em Gálatas 2:1-10. Somos levados a entender, portanto, que a visita mencionada em Gálatas 2:1-10 é a mesma de Atos 15:1-29. Não falta apoio a tal idéia. Ambos os relatos relacionam-se à mesma questão da circuncisão e da lei, envolvendo Paulo e Barnabé, mais os líderes da igreja em Jerusalém. Em ambos os relatos os conciliares chegam à mesma conclusão e passam a adotar a mesma prática. É verdade que Atos retrata uma reunião grande, e Gálatas uma reunião particular. Mas em Gálatas há, com toda clareza, outras personalidades, inclusive os advogados da circuncisão para os gentios (cp. Gálatas 2:4s. e Atos 15:5). As diferenças entre os dois relatos podem ser explicadas pelos objetivos dos dois escritores. Lucas escrevia para a igreja toda, e desejava apenas informar seus leitores a respeito dos resultados da reunião. Paulo escreveu a um grupo particular, acerca de questões particulares (veja a discussão adicional, adiante). É certo que não existem contradições nos dois relatos.

Entretanto, pode-se perguntar com certeza: Se Paulo escreveu Gálatas após o concilio, por que ainda havia cristãos exigindo a circuncisão da parte dos gentios (a razão da carta do apóstolo), contrariando a decisão do concilio? Por que ele não citou essa decisão ao resistir contra essa exigência? Todavia, se chegarmos à conclusão de que Gálatas foi escrita pelo menos depois do início da "segunda viagem missionária", não havia necessidade de citar os "decretos". Ele podia presumir que os leitores já estivessem familiarizados com estes, visto que o próprio apóstolo os levara aos gaiatas (16:4) e só precisava fazê-los lembrar-se da disputa cm termos gerais (Gálatas 2:1-10), acrescentando seus próprios argu­mentos teológicos contra a necessidade de qualquer outra coisa além da fé para a pessoa tomar posse da salvação. O fato de alguns judeus cristãos não concordarem com a decisão conciliar não é surpreendente e tampou­co tem base para supormos que o concilio ainda não se havia reunido quando Paulo escreveu a carta.

Também se tem dito que a vacilação de Pedro em Gálatas 2:11-14 fica incompreensível se considerarmos que a reunião do concilio tivesse ocorrido há pouco tempo. Todavia, a questão em debate (como já mencionamos) não era a circuncisão, que havia sido o cerne do concilio, mas as leis dietéticas. Caso a situação descrita em Gálatas indicasse que Pedro não havia tirado das decisões conciliares as implicações, como deveria tê-lo feito, só podemos presumir que este foi um exemplo — de modo algum descaracterizado — de o apóstolo simplesmente ter agido sem pensar. Barnabé fez o mesmo (Gálatas 2:13), o que vem demonstrar como os hábitos antigos constituem um laço poderoso ao redor de certas pessoas, e como lhes era difícil adotar um novo modo de viver.

Outro argumento levantado contra a identificação de Atos 15:1-29 com Gálatas 2:1-10 é que a passagem de Gálatas é apenas a segunda visita mencionada por Paulo na carta, enquanto Atos 15:1 -29 é a terceira. Isto só constitui um problema se aceitarmos a idéia de que Paulo estava enumerando suas visitas, mas nada nos dá esta certeza. Devemos enten­der aqui por que ele escreveu a carta. Foi para mostrar, em primeiro lugar, que ele era independente dos demais apóstolos e, em segundo lugar, que eles concordavam a respeito do evangelho. Visto que a visita causada pela fome de Atos 11:30 nenhuma relação tinha com esses assuntos, poderia ter sido omitida de todo. Com freqüência apela-se a Gálatas 1:20 em apoio à idéia de que Paulo estava recontando todas as suas visitas, mas nesse versículo ele apenas afirma que o que está dizendo é verdade. Gálatas 2:1-10 pode ter sido a segunda visita que tem algum significado para a argumentação da carta.

A questão de qual visita tinha sido essa não é a única que se levanta neste capítulo. Outra questão diz respeito à historicidade dos sermões de Pedro (vv. 7-11) e de Tiago (vv. 13-21); no caso de Pedro, porque parte de sua linguagem podia ter sido de Paulo (especialmente v. 11; cp. 13:38ss.; Gálatas 2:15s; Efésios 2:8); no caso de Tiago, porque a argu­mentação parece girar em torno da versão grega de Amos 9:11 s., presumindo-se que Tiago teria citado essa passagem do hebraico, mas falado em aramaico. Entretanto, não há razões por que o concilio não pudesse ter sido realizado na língua grega, e nenhuma razão, portanto, por que Tiago não mencionasse direto da LXX. Qualquer nativo da Galiléia quase certamente era bilíngüe desde a infância. Os vários pontos de contato entre sua fala e a carta que lhe leva o nome são, além disso, comprovantes da historicidade de ambos. Também há pontos de seme­lhança entre o discurso de Pedro e seus pronunciamentos anteriores, inclusive certas expressões distintivas, que nos dão a confiança de que temos aqui uma reminiscência genuína do que ele havia dito. Se às vezes a linguagem ressoa como algo que Paulo poderia ter dito, é possível que isso tenha acontecido mesmo. Pedro poderia ter passado muitas horas na companhia de Paulo antes de pronunciar seu sermão (Gálatas 2:1-10), e teria apanhado um pouco da linguagem de Paulo. É claro que é bem possível que a familiaridade de Lucas com o fraseado específico de Paulo fizesse com que o discurso de Pedro, ao ser registrado, adquirisse algumas características paulinas.

Há ainda a questão da atitude de Paulo diante dos assim chamados decretos apostólicos. De fato ele não faz referência a tais decretos em suas cartas, nem mesmo quando pareceria muito apropriado fazê-lo, como em Romanos Mel Coríntios 8-10. Isto tem levado alguns a pensar que as recomendações de Atos 15:20 lhe foram totalmente inaceitáveis, e que Lucas relata-nos estas recomendações de modo bem diferente, por ter pouquíssimas evidências, e também por causa de seus próprios pontos de vista. Todavia, para confrontar o fato de Paulo não mencionar os decretos, devemos salientar o fato igualmente importante de que nada existe em seus escritos que dê a sugestão de que o apóstolo os desapro­vava. Pode muito bem ter sido o caso de Paulo preferir argumentar pessoalmente numa questão, em vez de citar a decisão a que o concilio havia chegado. Seja como for, os decretos foram encaminhados apenas à igreja de Antioquia e à província da Síria-Cilícia (veja a disc. sobre 15:32). Paulo os entregou também às igrejas do sul da Galácia (16:4), visto serem "igrejas filhas" de Antioquia; mas Paulo poderia ter julgado inapropriado tê-los publicado por todo o campo missionário. Entretanto, 0 princípio que sublinha tais decretos, o da consideração para com o "irmão mais fraco", é princípio que Paulo ensinou a todas as igrejas (cp., p.e., Romanos 14:21; 15:1-3; 1 Coríntios 8:9-13), pelo que ele poderia ler dito a respeito das decisões do concilio: "esses... nada me comuni­caram", isto é, "nada acrescentaram à minha mensagem" (Gálatas 2:6). Tampouco opunha-se Paulo em princípio à idéia de que a vida deve ser regulamentada por regras. Ele próprio entendia que seu ensino dava apoio à lei (Romanos 3:31), e suas cartas estão cheias de exortações a que vivamos mais pelo espírito da lei que pela letra (cp., p.e., Romanos 13:8-10; Efésios 5:1, 3ss., 31; 6:2s.). Qs costumes do apóstolo, sempre que apropriados (e talvez por preferência pessoal; veja a nota sobre 26:5) ciam os de um judeu (cp. 16:3; 18:18; 20:6, 16; 21:26; 27:9; 1 Coríntios 9:19; 11:2-16). É claro que agora ele sabia que a obediência à lei já não podia mais ser considerada a base da salvação (cp. Gálatas 2:15s.; veja ji disc. sobre Atos 13:39); entretanto, para Paulo a lei continuava a ser guia cheio de autoridade para o viver cristão (veja ainda a disc. sobre 21:24). De modo geral, esta teria sido a conclusão a que chegou o concilio de Jerusalém, pelo que Lucas traça um retrato de Paulo que se ajusta perfeita e coerentemente ao quadro que dele temos a partir de seus próprios escritos.

15:1-2 / A questão da admissão de gentios parece ter-se tornado um problema em Antioquia somente depois que alguns que tinham descido da Judéia ensinavam os irmãos: Se não vos circuncidardes... O ensino deles era que a circuncisão era necessária para a salvação (veja .linda a disc. sobre o v. 5). Paulo viu de imediato que um ponto funda­mental estava em jogo, pelo que, ao lado de Barnabé, engajou-se em não pequena discussão e contenda com eles (judaizantes, v. 2, à luz de 14:27). A unidade da igreja estava sendo ameaçada, e a única solução parecia estar em que alguns dentre eles subissem a Jerusalém, aos apóstolos e aos anciãos, por causa dessa questão (v. 2), devendo os apóstolos regressar, talvez, de outro lugar onde estivessem para esse propósito (veja a disc. sobre 12:17). Nomeou-se um corpo de delegados, inclusive Paulo e Barnabé e alguns dentre eles, uma referência talvez aos profetas e mestres de 13:1 eTito, se Gálatas 2:1-10 serve de guia. Se acatarmos estritamente a gramática, foram os judaizantes que tomaram a decisão de enviar delegados a Jerusalém. Todavia, é muito mais provável que a igreja local é que tenha tomado essa decisão.

15:3-5 / Eles, sendo enviados pela igreja (v. 3), isto é, um grupo de crentes, membros da igreja, viajou até certa distância acompanhando os delegados — é o que a expressão em grego diz. Foi um sinal de respeito e afeição pelos delegados (cp. 20:38; 21:5, 16; também o fato de um grupo ir ao encontro de Paulo em 28:15). A estrada percorria o litoral passando por Berito (Beirute), Sidom, Tiro e Ptolemaida, talvez por Cesaréia e daí a Jerusalém (veja a nota sobre 9:31). A Fenícia havia sido evangelizada ao mesmo tempo em que a igreja se estabelecera em Antioquia (11:19; cp. também 21:3ss., 7), de modo que em todos esses centros, bem como em Samaria (cp. 8:25), havia comunidades cristãs a serem visitadas e notificadas sobre a conversão dos gentios (v. 3). O verbo grego dá a entender que o relato foi feito com minúcias (ocorre só aqui e em 13:41), e sem exceção; as notícias trouxeram alegria a todos quantos as ouviram (v. 3; veja a disc. sobre 3:8). Quando os delegados chegaram a Jerusalém, levavam todo o peso, digamos assim, do apoio das igrejas do norte.

A delegação de Antioquia foi recepcionada pela igreja reunida e seus líderes (alguns comentaristas têm a impressão de que esta acolhida teria sido mais restrita), e de novo relatou a história de quão grandes coisas Deus tinha feito com eles (v. 4, lit, "com eles"; cp. 14:27; em 15:12 é "por meio deles"). Observe a ênfase nesses relatos da mão de Deus na questão, com a implicação de que, se Deus havia abençoado a obra, era sua intenção clara que os gentios fossem recebidos livremente. Nem todos ali presentes concordaram com esta lógica, pois foram rápidos em expor seu ponto de vista. Talvez baseassem seu ensino em passagens como Êxodo 12:48s. e Isaías 56:6, ao declarar que era necessário (gr. dei; veja a disc. sobre 1:16) circuncidar os gentios e obrigá-los a cumprir a lei. Afirmou-se que a aliança mencionada em Isaías 56:6 era a da circuncisão. Os advogados da circuncisão eram da seita dos fariseus, que tinham crido — esta é a primeira menção de convertidos dessa seita, além de Paulo (v. 5). Eram crentes, tinham crido — o particípio presente tem a intenção talvez de enfatizar a realidade de sua fé (veja a disc. sobre 14:23), a saber, estavam perfeitamente convencidos de que Jesus era o Messias, embora ainda pensassem nele como o rei de Israel, do qual os gentios seriam excluídos se não aceitassem sua lei (cp. 1:6).

15:6-7a / A reunião inicial descrita no versículo 4 pode ter tido a intenção de ser apenas uma recepção oficial; nenhum dos líderes talvez lenha desejado discutir a questão central nessa ocasião. Em vez disso, a reunião se teria dissolvido a fim de permitir que seus membros discutis­sem o assunto em particular (v. 6). Gálatas 2:1-10 pode ser o relato pessoal de Paulo dessa reunião particular; então, a discussão evidente­mente centralizou-se no caso especial de Tito. A passagem paulina indica que o apóstolo João estava presente, além dos demais mencionados por I , ucas. O relato de Lucas desse episódio é um tanto resumido, de modo que somos forçados a especular a respeito de algumas minúcias. Já dissemos que o v. 6 pode ter indícios de uma reunião particular. As palavras iniciais da versículo seguinte (havendo grande discussão) podem referir-se também a tal reunião. Mas a seguir a passagem fala de "toda a multidão" (v. 12) e de "toda a igreja" (v. 22). Presumimos, pois, que quando Pedro se levantou para falar (v. 7b), a igreja toda havia-se reunido de novo, de modo que estas eram as apreciações finais, segundo uma agenda previamente estipulada.

15:7b-11 / Pedro iniciou fazendo uma reminiscência dos eventos que haviam culminado com a conversão de Cornélio, sua família e amigos (veja 9:32-11:18). Tudo acontecera, afirmou o apóstolo, há muito tempo — talvez dez ou doze anos antes (v. 7). Naquela época havia ficado claro que era da vontade de Deus que os gentios se salvassem. Assim diz o texto grego: "que os gentios ouvissem da minha boca a palavra do evangelho, e cressem" (v. 7), sendo digno de nota que a frase "da minha boca" só ocorre nos sermões de Pedro (1:16; 3:18, 21; 4:25; mas cp. 22:14). Outra particularidade de Pedro aparece no versículo seguinte: Deus, que conhece os corações (v. 8; cp. 1:24), sendo, neste atual contexto, referência particular ao pecado e à necessidade que todos temos da salvação. E Deus tem oferecido a salvação a todos, sem fazer distinção (não fez diferença alguma entre eles e nós, v. 9; cp. 10:20, 34; 11:12). Que isso foi assim se comprovou pelo dom do Espírito Santo aos gentios, "exatamente da mesma maneira" (essa é a força do grego, que se traduziu por assim como, v. 8) ocorrera aos crentes judeus (cp. 10:47; 11:17). Assim é que os gentios, que os judeus consideravam imundos, haviam sido "purificados" de seus pecados (NIV diz: "ele lhes purificou os corações", e ECA: purificando os seus corações pela fé [em Jesus], v. 9; cp. 10:15, 28; 11:9). Na verdade, esse seria o único meio pelo qual judeus e gentios, igualmente, poderiam purificar-se. Se alguém, judeu ou gentio, quisesse salvar-se, haveria de ser pela graça do Senhor Jesus Cristo, mediante a fé no Senhor, e por nada mais (v. 11; seria linguagem paulina? Quanto à idéia, cp. 3:16; 4:10-12; 10:43). Por que, então, pergunta Pedro, poríamos um jugo sobre alguém? (a saber, a lei; veja Siraque 51:26; Salmos de Salomão 7:8; 17:32) um jugo que nem nossos pais nem nós pudemos suportar? (v. 10) — Pedro, não menos do que Paulo, endossou a acusação feita por Estevão (7:53; cp. 13:39; Gálatas 6:13; veja também Mateus 11:28ss.). Ele advertiu que qualquer tentativa de reverter-se a religião cristã a uma religião da lei seria tentar a Deus (v. 10), visto que isso seria questionar o poder de Deus para purificar os corações dos incircuncisos pelo seu Espírito. Com estas palavras Pedro se despediu dos leitores de Atos — saiu da história.

15:12 / O povo silenciou enquanto ouvia a Barnabé e a Paulo (a

ordem dos nomes talvez reflita o modo por que a igreja de Jerusalém os via; veja a disc. sobre 13:6ss.). Um e outro falou sobre os eventos de seu recente trabalho entre os gentios, com ênfase particular em quão gran­des sinais e prodígios Deus havia feito por meio deles entre os gentios

(v. 12; cp. v. 4), numa clara demonstração de suas bênçãos sobre o trabalho (cp. João 3:2; Hebreus 2:4). Além da descrição desses fatos eles aparentemente nenhuma tentativa fizeram para justificar o que haviam feito. Pedro já havia argumentado acerca das decisões tomadas acertadamente, à luz de suas próprias experiências, e Tiago haveria de mostrar que as Escrituras também forneceriam uma defesa.

15:13-18 / Tiago foi o último a falar. Literalmente, assim diz o texto: "ele respondeu, dizendo", não como se estivesse respondendo a uma pergunta ali formulada, mas à expectativa do concilio de que ele tivesse algo para dizer. Parece que por esta altura Tiago era o líder espiritual da igreja em Jerusalém (veja a disc. sobre 12:17 e as notas). Visto ter sido

ele afamado pelo apego à lei judaica, sua defesa da posição já adotada pelos oradores que o precederam deve ter sido mais impressionante. Começou com uma saudação familiar, "homens, irmãos" (v. 13; veja a disc. sobre 1:15), bastante significativa neste contexto. A seguir, fez referência ao sermão de Pedro, chamando-o pelo seu antigo nome hebraico, "Simão" (cp. 2 Pedro 1:1). Simão, disse ele, havia-se referido a que Deus "visitou" os gentios (conforme o texto grego, v. 14) — a referência é aos acontecimentos que envolveram Cornélio, em termos da linguagem familiar das Escrituras (mas nas cartas, este verbo só se encontra em Tiago 1:27). Naquela ocasião Deus havia visitado os gen­tios, para tomar dentre eles um povo para o seu nome (v. 14, "para o seu nome" é lit; veja a nota sobre 2:38). Eis aqui um paradoxo, porque a palavra povo (laos) é a palavra geralmente aplicada a Israel, para diferenciá-lo dos gentios, mas aqui os gentios estão incluídos entre o povo de Deus.

A esse resumo do sermão de Pedro, Tiago acrescenta, então, as palavras dos profetas (v. 15) — plural, embora mencione apenas um profeta, ou porque ficam incluídos outros que falaram segundo a mesma linha profética, ou porque estivesse mencionando o livro dos doze profetas. A citação é de Amos 9:11 s., e parece uma reprodução livre da versão grega, talvez uma frase de Isaías 45:21, "quem predisse isto desde a antigüidade" (cp. 3:21). Esta passagem nos fala de duas coisas: primei­ra, a restauração da nação, tanto como povo de Deus, um povo não dividido, estando o norte e o sul de novo sob um único rei, como nos dias da antigüidade — é a reedificação "do tabernáculo de Davi, que está caído" (v. 16; cp. Amos 9:11) — e segunda, a restauração do reino à sua antiga grandiosidade, incorporando de novo as nações circunvizinhas. O segundo ponto é que torna relevante a passagem neste sermão, de modo especial pela forma com que aparece na LXX. A diferença entre a versão grega e a hebraica gira em torno de uma confusão entre duas palavras hebraicas. Primeiro, o texto hebraico de Amos 9:12 traz Davi "possuin­do" (Hebraico yiresu) o que restou da terra de Edom e todas as nações que um dia foram de Deus — referência aos países que certa ocasião constituíam o reino de Davi. Mas, na LXX, a referência é ao resto da humanidade (isto é, os gentios) "procurando" (hebraico yiáeresii) ao Senhor, que os chama de sua propriedade (lit., "sobre quem meu nome é pronunciado", expressão que se encontra noutra passagem do Novo Testamento somente em Tiago 2:7). Segundo, os massoretas (escribas judaicos) liam a palavra hebraica sem vogais -á-m como "Edom", e faziam dela o objeto direto da sentença; os tradutores da LXX liam a mesma palavra como "homem", e faziam dela o sujeito (uma ou outra alternativa consegue-se mediante uma vocalização diferente das mesmas consoantes hebraicas). Em conseqüência, na LXX Israel não possui terras, mas as nações se convertem.

De modo genérico, porém, o resultado de ambos os textos, o hebraico e o grego, é o mesmo, a saber, a inclusão de outros povos no futuro reino de Israel. É possível, então, que o uso da LXX se deva a Lucas, mas que Tiago teria citado essa passagem como apoio à recepção dos gentios na igreja. Por outro lado, não existe uma razão apriori por que ele próprio não houvesse citado a LXX, visto que os debates teriam sido conduzidos em grego. A maioria dos palestinos, de modo especial os galileus, estariam familiarizados com o grego, e alguns dos de Antioquia talvez nem falassem o aramaico. Que a profecia foi usada num sentido muito diferente da intenção original estava de acordo com os métodos exegéticos da época. A crença em que Cristo podia ser encontrado em todas as páginas das Escrituras capacitou Tiago a interpretar a casa de Davi como sendo a igreja de Cristo, e a profecia, como um todo, como a igreja reunindo em si todas as nações (veja a disc. sobre 1:20).

15:19-21 / Com base nessa interpretação, Tiago recomendou que os gentios que estavam voltando-se para Deus (isto é, que criam em Deus; veja a disc. sobre 9:42) não deveriam ser molestados, isto é, deles não se devia esperar mais do que a fé como elemento essencial à salvação. O raciocínio pelo qual Tiago chegou a essa posição não nos é claro, mas pode ter sido o seguinte: visto que a profecia não faz exigências sobre os gentios que entram no reino, nada se deveria exigir deles. Entretanto, desde que houvessem entrado no reino, certas coisas poderiam com acerto ser-lhes pedidas. Tais coisas, chamadas de "decretos apostólicos", deveriam ser colocadas no papel, disse Tiago. O tom autoritário com que ele proferiu estas palavras (o grego usa o pronome pessoal enfático) nenhuma margem de dúvida deixa quanto ao comando exercido por Tiago, que resume e apresenta uma resolução de ordem prática.

Como se apresentam, os decretos tocam nos aspectos éticos e cerimo­niais da lei (mas veja a nota sobre o v. 20). Aos crentes gentílicos se pedia, primeiro, que vos abstenhais das coisas sacrificadas aos ídolos; segundo, que se guardassem contra a prostituição — pode ter havido alguma conexão intencional entre estes dois decretos, visto que a idola­tria com freqüência envolvia a imoralidade; entretanto, "imoralidade" às vezes é tomada no sentido de casamento entre graus de parentesco proibidos (cp. Levítico 18:6-18)—terceiro, que não comessem da carne sufocada (que por isso mesmo retém o sangue, cp. Levítico 17:10, 13); e quarto, que não comessem do sangue (v. 20; cp. Levítico 3:17; 7:26; 17:10; 19:26; Deuteronômio 12:16, 23; 15:23). Faz muito tempo que se (cm observado que estes decretos poderiam ser um resumo da lei de Levítico 17-28 a que estavam obrigados não apenas os judeus, mas lambem os estrangeiros que viviam entre eles. Todavia, seria a introdu­ção desses preceitos agora uma negação da liberdade recentemente obtida pelos gentios? Alguns acham que sim; todavia, ao propô-los Tiago tinha em mente um objetivo bem diferente daquele que o partido da circuncisão buscava alcançar. Estes haviam afirmado que a obediência à lei era necessária para a salvação (v. 1), enquanto os decretos, para Tiago, objetivavam apenas capacitar os gentios salvos a viver em har­monia uns com os outros. Sabia-se muito bem que sempre haveria judeus cristãos que permaneceriam fiéis à lei (cp. 21:20s.), e seria impossível para estes conviver com os gentios cristãos sem que estes observassem estes requisitos básicos. A observação final de Tiago parece significar que, desde que os judeus cristãos estavam preparados para pôr de lado seu preconceito de longa data contra os gentios, os gentios cristãos deveriam estar dispostos a fazer algumas concessões frente aos escrúpu­los judaicos. Acontece que a lei vinha sendo lida desde os tempos antigos... nas sinagogas (v. 21). Noutras palavras, ela havia feito parte da vida judaica durante tanto tempo que os judeus não podiam pô-la de lado facilmente. Existe um precedente quanto a essa decisão do concilio naquilo que era denominado "leis de Noé", as quais (na opinião dos rabis) haviam sido dadas a Noé, e a elas deviam sujeitar-se todos os gentios (cp. Gênesis 9:4; veja G.F.Moore, Judaism, vol. 1, pp. 274s., 339).

 

Notas Adicionais # 38

15:1 / Alguns que tinham descido da Judéia: Embora a igreja na Judéia houvesse permanecido mais ligada à cultura judaica do que quaisquer outras igrejas, estava longe de ser um "bloco monolítico", especialmente nos tempos primitivos. Havia aqueles que se mostravam intransigentes na questão da obediência à lei (veja a disc. sobre 11:ls. e 21:20). Houve outros, contudo — Hengel pensa numa grande proporção dos cristãos palestinos — que "teriam sido abertamente simpáticos a novos desenvolvimentos fora da Palestina, e ao mesmo tempo desconfiavam da tremenda ênfase na obediência à lei" entre seu próprio povo (Atos, pp. 101s.)- Todavia, estavam nadando contra a correnteza. Vários fatores exerciam grande força nesse período, obrigando-os a acomodar-se de novo à sua fé primitiva. Hengel menciona a "crescente pressão da parte do ambiente judaico na Palestina e o perigo constante de novas perseguições (1 Tessalonicenses 2:14s.); a crescente influência de Tiago, irmão do Senhor, e dos 'anciãos' (cp. Atos 11:30; 12:17); o declínio da influência dos antigos discípulos de Jesus, os 'Doze', e com isto o declínio da tradição direta acerca de Jesus na Palestina" (Atos, p. 113).

15:20 / Que se abstenham das contaminações dos ídolos, lit., "que se abstenham da poluição dos ídolos". À luz do v. 29, em que o substantivo refere-se a "coisas sacrificadas aos ídolos", é provável que ECA traduza corretamente este versículo. Entretanto, é possível que a palavra ídolos tenha conotação mais ampla, e que a proibição aqui não seja simplesmente contra o comer alimento, mas contra participar de qualquer ato associado aos ídolos. De 1 Coríntios 8:10 depreende-se que era fácil os cristãos correrem esse risco.

E da prostituição: os manuscritos mais antigos que possuímos, os assim chamados papiros Chester Beatty (P45), nenhuma referência fazem à imorali­dade, mas apenas à idolatria, às coisas estranguladas e ao sangue. No entanto, o presente texto é suficientemente apoiado, de modo que podemos aceitá-lo com confiança.

Da carne sufocada: o texto ocidental omite a referência a coisas estrangu­ladas tanto aqui como no v. 29. Em 21:25 há nova referência aos "decretos", e de novo o texto ocidental (representado pela letra D) omite essa referência específica. Tal omissão permite que se interprete essas proibições como refe­rindo-se a questões éticas, apenas, a saber, idolatria, imoralidade e "sangue", isto é, assassinato. Além disso, o texto ocidental contém uma advertência para que não façamos aos outros o que não desejamos para nós mesmos (a regra áurea em forma negativa; cp. Tobias 4:15; Didache 1.2; b. Shabbath 3la). Esse texto aparece como alternativa atraente a quantos argumentam que Paulo não podia endossar os decretos conforme aparecem no texto aceito (veja a introdução a esta seção). Contudo, nem o escriba que redigiu o texto ocidental, nem os que preferem sua redação mostram alguma apreciação pela situação da igreja do primeiro século, ou pela atitude do próprio Paulo a respeito da lei. Este texto reflete um período posterior da igreja, quando a controvérsia legalística do primeiro século era coisa do passado, e que um novo moralismo havia-se infiltrado nos círculos cristãos. Há consideráveis evidências de que os decretos, como os temos hoje, não só foram publicados como também acatados nas igrejas gentílicas durante muitos anos após sua promulgação (cp. Apocalipse 2:14, 22; Justino Mártir, Diálogo 34.8; Minúcio Félix, Otávio 30.6; Eusébio, História Eclesiástica 5.1.26; Tertuliano, Apologia 9.13; Pseudo-Clemente, Homílias 7.4.2; 8.1, e 19 — talvez também Luciano, On the Death of Peregrinus [Sobre u Morte de Peregrino], 16, que nos conta como os cristãos romperam com Peregrino porque "ele foi flagrado... comendo uma coisa que lhes era proibi­do").