Atos 5:17-42
Atos 5:17-42

Os Apóstolos São Perseguidos 

 

O impacto dos cristãos sobre a cidade foi de tal ordem (não eram necessariamente numerosos, mas estavam sob os olhares do público; veja a nota sobre 4:4), que as autoridades religiosas da cidade, especialmente os saduceus, decidiram mover nova ação judicial contra eles, ou pelo menos contra seus líderes. A grande semelhança entre a prisão e o julgamento dos apóstolos, descritos aqui, e a prisão anterior de Pedro e João, já havia sido notada, como também já foi observado o paralelismo entre a forma como estes e aqueles conseguiram escapar, em 12:6-19 (veja a disc. sobre 3:1-11). Outras questões críticas relacionadas a essa passagem serão discutidas na exposição e nas notas que se seguem.

Também é preciso que se faça menção aqui ao paralelismo adicional que às vezes se traça entre a paixão de Cristo e o tratamento a que os cristãos foram submetidos neste capítulo e nos seguintes (veja também a disc. sobre 19:21-41). Assim, o discurso de Gamaliel e o resultado decorrente (5:35-40) têm sido assemelhados ao veredicto de Pilatos em Lucas 23:15s.; o apedrejamento de Estevão e a subseqüente perseguição da igreja são assemelhados à intransigência do povo judaico demonstrada no julgamento e morte de Jesus. Com respeito ao caso do Senhor Jesus, pode-se argüir convincentemente que Lucas redigiu a narrativa de Atos segundo o modelo da história do seu evangelho (veja a disc. sobre 7:54-8:1 a). Se podemos dizer o mesmo da seção maior, que se inicia aqui e percorre a história até à narrativa de Estevão, é outra questão, conquanto é certo que demonstra em termos mais gerais como Cristo continuou a sofrer — bem como a agir e a ensinar — mediante o seu corpo, isto é, a igreja (veja a disc. sobre 1:1; cp. 9:4s.; Colossenses 1:24).

5:17-18 / Embora o povo em geral continuasse a demonstrar graça para com os crentes (cp. 2:47; 5:13, 26), a animosidade do sumo sacerdote e de todos os que estavam com ele, como membros do partido dos saduceus, continuou a crescer. Esta referência inclui as pessoas indicadas em 4:6, mas pode significar também que o sumo sacerdote tinha agora o apoio geral de todos os saduceus, os quais, de todos os judeus, eram os que mais se ressentiam da ênfase dos cristãos sobre a ressurreição. A inveja deles (gr. zelos) foi um ataque de partidarismo fanático (este é um dos sentidos usuais dessa palavra grega) contra os que tinham opinião contrária. Sem dúvida alguma, a disseminação do ensino relacionado à ressurreição de Jesus era a causa básica de seu ódio, misturado ainda ao pavor que nutriam a qualquer movimento que pudes­se perturbar o equilíbrio da sociedade e, portanto, arruinar a posição de poder que nela desfrutavam. O contexto, entretanto, indica que os apóstolos foram presos por causa dos milagres. Se isso aconteceu, talvez tenha sido apenas um pretexto. O caso é que os apóstolos se viram na prisão pública aguardando o julgamento do Sinédrio no dia seguinte (v. 18; veja a nota sobre 4:3).

5:19-20 / Mas antes de raiar o dia foram libertados por um anjo, com a seguinte ordem: Ide e apresentai-vos no templo, e dizei ao povo a mensagem completa desta nova vida (v. 20). "Apresentai-vos" expres­sa a ousadia com que deveriam pregar (cp. 2:14), sendo o templo o lugar mais público em que poderiam pregar. Era também o lugar mais apro­priado por ser a "casa de Deus". O tema deles deveria ser a vida a que toda a pregação apostólica se referia (daí, "esta vida"), a vida que é outorgada por aquele que é a própria ressurreição e a vida (cp. 3:15; 4:12; João 11:25). Ehrhardt faz conexão entre esta instrução e o lamento de Jesus sobre Jerusalém (Lucas 13:34), e sugere que aqui, pela última vez, ouve-se Jesus fazer seu apelo (mediante os apóstolos) ao seu povo (p. 26).

A história da libertação dos apóstolos recebeu várias explicações. Dizem alguns que foi devido a algum fenômeno natural, como um terremoto, ou um raio; outros, que alguém simpático para com a causa dos crentes soltou-os — os próprios carcereiros, talvez, ou outra pessoa com a conivência do carcereiro. A palavra grega para anjo pode signifi­car simplesmente "mensageiro" (cp. Lucas 7:24; 9:52; Tiago 2:25), de modo que poderia significar aqui um agente humano, embora no grego bíblico essa palavra é empregada mais freqüentemente a respeito de agentes divinos — "anjos" — na acepção geralmente aceita do termo. Mas ainda que se suponha que este é o sentido em que Lucas empregou a palavra, ainda se argumenta que o tal "anjo" na verdade foi um ser humano, ou por ter sido mal interpretado pelos apóstolos, na excitação daquela noite, como sendo um anjo, ou por ter sido "transformado" em anjo quando a história foi contada, e recontada, nos anos subseqüentes. Dunn está entre os autores que acham que "a mão da lenda desempenhou seu papel na modelação dos milagres de libertação" (5:19-24; 12:6-11; 16:26; 28:3-6). "Estas histórias", afirma Dunn, "talvez já estivessem num estágio bem desenvolvido ao chegarem a Lucas, tendo incorporado alguma coisa no processo de divulgação" (Jesus, pág 166). Seguindo uma trilha similar, Bruce salienta que "na literatura clássica podemos traçar uma 'forma' especial em que se era costumeiro descrever inenar­ráveis fugas de prisão; alguns elementos desta 'forma' foram detectados aqui", mas esse autor apressa-se em acrescentar: "a crítica deste tipo de forma nos diz pouca coisa a respeito dos fatos reais do caso que está sendo narrado" (Book [Livro], p. 119s.; veja também J. Jeremias, "thy-ra", TDNT, vol. 3, pp. 175s.). É certo que para Lucas, um "anjo" significava mais do que apenas um sinônimo de "desconhecido". No texto de Lucas, os anjos com freqüência estão relacionados à oração; todavia, mesmo à parte da oração, eles representam a presença de Deus, com freqüência a resposta de Deus às necessidades de seu povo (veja as disc. sobre 1:1 Os.; 12:6ss.). Assim, embora Lucas talvez não soubesse com exatidão como ocorreu a fuga.dos apóstolos, pelo menos tinha certeza de que o poder soberano de Deus estava por trás dela, e que "o desenvolvimento do evangelho não pode ser prejudicado por prisões nem grilhões, visto que o braço de Deus é suficientemente longo para quebrar as fechaduras das portas das prisões" (J. Jeremias, TDNT, vol. 3, p. 176). Mais do que isso não podemos dizer, exceto acrescentar que qualquer objeção contra a teoria da intervenção divina, que afirme que esta nada fez, não tem apoio algum. Os apóstolos precisavam de grande encoraja­mento nessa época, e a tiveram. Tivessem os saduceus olhos para enxergar, esse fato lhes teria demonstrado como era inútil tentar segurar a torrente do novo movimento. É estranho que mais tarde, quando os saduceus tiveram a oportunidade, aparentemente não questionaram os meios de fuga dos apóstolos. Ficamos imaginando se esses inimigos de Cristo temiam que tão grandes evidências de algo sobrenatural viessem a tornar-se públicas (cp. Mateus 28:11-15). Obviamente Lucas não nos dá todos os detalhes, mas é possível que muitas perguntas sobre essa questão tenham sido feitas.

5:21 / Obedientes às ordens angelicais, os apóstolos estavam no templo ao nascer do sol, pregando aos que haviam chegado ali para o sacrifício matutino (veja a disc. sobre 3:1). No entretempo, desconhecendo a fuga dos apóstolos, o Sinédrio se reúne. Agora é o concilio pleno que delibera; parece que fora apenas um pequeno grupo que interrogara Pedro e João antes (4:5ss.). É possível que naquela ocasião os saduceus apenas tentassem silenciar os apóstolos; agora, queriam que os fariseus contribuíssem com suas idéias para solucionar o problema.

5:22-26 / Foram enviados uns guardas — talvez dentre a polícia do templo — a fim de trazerem os prisioneiros ao concilio (quanto à localização da sala de reuniões, veja a disc. sobre 4:5), mas, espanto geral, os policiais relatam que os prisioneiros não foram encontrados. Não havia sinais de fuga (nas portas trancadas, etc), e aparentemente os guardas da prisão não estavam cientes do que havia acontecido. Os membros do concilio que se alteraram profundamente ao ouvir tais notícias são mencionados de modo específico: o capitão da guarda do templo (v. 24), cuja responsabilidade era manter os prisioneiros sob custódia (veja a disc. sobre 4:1), e os principais sacerdotes (4:24), isto é, os saduceus, sob cuja instigação os apóstolos foram presos (v. 17). Estavam perplexos, não sabendo como explicar a fuga dos prisioneiros, nem o que fazer a seguir (veja a disc. sobre 2:12). Nesse estado de grande perturbação, recebem a notícia de que os ex-prisioneiros estão de volta no templo, e ensinam o povo (v. 25). O capitão da guarda vai então com seus homens; os apóstolos foram aprisionados outra vez e conduzidos finalmente ao Sinédrio, desta vez sem violência, visto que a polícia tem ia o povo. De sua parte, os apóstolos não resistiram à voz de prisão. A lição de Mateus 5:38ss. havia sido aprendida (cp. Lucas 22:50s.). Estava bem configurado e comprovado que, quando o povo se enfurecia contra alguém, podia tornar-se violento e atirar-lhe pedras, pelo que os guardas foram prudentes e trataram os apóstolos com cuidado (cp. 21:27ss.; João 8:59; 10:31; veja também a disc. sobre Atos 7:58).

5:27-28 / A situação no Sinédrio era a mesma de antes, com a diferença que agora havia doze pessoas onde previamente havia apenas dois prisioneiros (veja a disc. sobre 4:7). O sumo sacerdote, como presidente do Sinédrio (veja a disc. sobre 4:5), abriu os trabalhos indo direto ao âmago da questão. Contrariando suas instruções, afirmou ele, os apósto­los haviam ensinado nesse nome (lit., "sobre esse nome", veja a disc. sobre 4:18). Segundo nos relata Lucas, parece que o sumo sacerdote nem sequer podia mencionar o nome de Jesus, mas em vez disso referia-se ao Senhor de modo indireto, e com máximo desprezo: esse homem.

É claro que as instruções a que ele alude só foram dirigidas a Pedro e a João, mas ficou claro que deveriam estender-se a todos, e presumia-se que fossem conhecidas de todos. O resultado da desobediência deles, afirmou o sumo sacerdote, é que a cidade estava cheia do ensino deles, e a culpa pela morte de Jesus com certeza haveria de recair sobre o Sinédrio. Na verdade, o sumo sacerdote acusou os apóstolos de perse­guirem esse objetivo. Ora, os apóstolos estavam muito bem preparados para lançar a culpa sobre quem a merecesse de verdade, mas isto era apenas (e sempre) incidental em sua pregação. Estava longe deles a preocupação de lançar a culpa concernente a esse pecado sobre quem quer que a merecesse; o maior objetivo deles era pregar o perdão divino para todos os pecados. É óbvio que os membros do concilio revelavam grande sensibilidade neste ponto, e com muita razão (veja Mateus 27:25).

5:29 / Todos os apóstolos falaram em defesa de suas ações; note-se que Lucas não faz nenhuma tentativa, ainda que pudesse fazê-la, de reproduzir o que ali disseram. Em vez disso, Pedro é que novamente se torna o foco de atenção (veja a nota sobre 3:1). Ainda assim, só temos breve esboço, talvez, do que ele deve ter dito em sua defesa. Sua fala, como a temos, tem a mesma força da declaração de 4:19, mas percebe-se agora um tom mais incisivo e firme, como seria de esperar-se, avista dos acontecimentos recentes (vv. 19, 20). Sem dúvida alguma, aqueles homens haviam desobedecido às ordens do Sinédrio; mas não tinham outra alternativa senão obedecer a Deus — uma prioridade que todos os cristãos devem acatar (cp. Lucas 12:8ss.; 14:25-33).

5:30 / Ao falar a respeito do Deus de nossos pais, Pedro empregou uma expressão que apontou de imediato para os grandes atos de Deus no passado. A tais atos, Deus acrescentara mais um: a ressurreição de Cristo, ressuscitou a Jesus. Nada há no texto grego que corresponda à tradução de NIV: "dentre os mortos", pelo que é pelo menos possível, e talvez provável, que não haja aqui referência à ressurreição, mas ao "levanta­mento de Jesus" como o Messias, como Deus levantara outros libertado­res ao longo da história de Israel (cp. Juizes 2:18; 3:9, 15; etc). Este sentido certamente dá uma seqüência melhor a este versículo, e ao seguinte. Primeiro, Deus lhes deu um Messias, a seguir eles o mataram, depois o Senhor o ressuscitou (uma palavra diferente) dentre os mortos, para que ocupasse um lugar de dignidade e poder que agora lhe pertencia (v. 31). Estes versículos expressam o contraste familiar entre a rejeição humana de Jesus e sua vindicação divina (cp. 2:23s.; 3:14s.; 4:10), que aqui se retrata de modo impressionante mediante uma referência de crueldade: vós o matastes, suspendendo-o no madeiro. Esta expressão é característica (sem exclusividade, porém) de Pedro (cp. 10:39; 1 Pedro 2:24; mas veja Atos 13:29) e talvez tenha o objetivo de associar a crucificação à maldição de Deuteronômio 21:22s. (cf Josué 10:26; veja a nota sobre 9:4, quando Paulo usa Deuteronômio 21:22s.). O objetivo destas palavras poderia ter sido salientar a culpa daqueles que haviam submetido Jesus a tal morte e, ao mesmo tempo, colocar a ação deles em violento contraste com a ação de Deus de glorificar a seu Servo. Lucas contribui pessoalmente para a agudeza desse contraste ao escolher um verbo que retrata a ação desses líderes de tal forma que foi como se com suas próprias mãos houvessem matado o Messias de Deus. Quanto à construção, "a quem vós matastes", veja a nota sobre 4:10.

5:31 / Porém Deus havia ressuscitado ao Jesus crucificado com a sua destra, ou melhor, "por meio de sua mão direita" (veja a disc. sobre 2:33), como Príncipe (traduzido por "Autor" em 3:15; veja a nota sobre 11:20) e Salvador da humanidade. O verbo pode significar tanto "levan­tar" no sentido literal, como "exaltar". Neste último sentido é empregado na LXX quanto à exaltação do Servo de Deus em Isaías 52:13; é quase certo que Lucas (a linguagem é dele mesmo), e talvez também Pedro, tenham tido o objetivo de aludir a Isaías. O título Salvador ocorre aqui pela primeira vez em Atos, e novamente em 13:23. É pouco usado nos evangelhos (Lucas 2:11; João 4:42) pois, na maior parte das citações, encontra-se nos últimos livros do Novo Testamento. É possível que este fato seja apenas acidental, destituído de maior significado. O próprio Jesus estava consciente de sua missão salvadora (Lucas 19:10), como os apóstolos estavam (cp. 2:21; 4:9, 12), de modo que apesar deste título não ter sido largamente usado, seu significado estava no âmago da fé logo de início. Seu emprego aqui pode dever-se à tipologia Moisés/Cristo da igreja primitiva; esta referência pode equivaler virtualmente à descri­ção de Moisés em 7:35.

Como Salvador, Jesus havia vindo para dar a Israel o arrependi­mento e a remissão dos pecados. A declaração de Pedro não inclui necessariamente outros povos, mas repitamos, parece que o apóstolo ainda não havia entendido as implicações universais do evangelho (veja as disc. sobre 2:39 e 3:26). Todavia, mesmo sem essa visão mais ampla, essas palavras eram terrivelmente audaciosas para serem dirigidas ao Sinédrio. Os judeus tinham um ditado, segundo o qual Deus guarda a salvação sob seu poder (veja Sinédrio 113a), e eis aqui Pedro atribuindo a salvação a Jesus. Não está explicado de modo preciso como é que Jesus seria capaz de salvar, e como o povo seria capaz de receber a salvação. É provável que Pedro tenha falado mais do que Lucas nos relata; talvez tenha preferido deixar estas perguntas sem resposta, contentando-se apenas com registrar esta atrevida profissão de fé (cp. 4:12).

5:32 / Lucas termina acrescentando que os apóstolos eram testemu­nhas destas palavras, isto é, dos fatos sobre os quais a fé repousava — a vida, morte, ressurreição e ascensão de Jesus (cp. 1:3, 9). Todavia, havia outra testemunha também, o Espírito Santo. Esta referência pode ser entendida de dois modos. Primeiro, o fato de o Espírito Santo ter sido dado no Pentecoste constituía evidência de que o dia da salvação havia chegado (veja as notas sobre 2:17ss.). Agora, todavia, o Espírito Santo dava testemunho com os apóstolos de que este era, na verdade, o dia da salvação. Podemos comparar estas palavras com as de Jesus em João 15:26s., onde o mesmo testemunho duplo é mencionado, com o pensa­mento adicional de que o Espírito é quem coloca esse testemunho no coração das pessoas, convencendo-as de que o testemunho apostólico é verdadeiro (cp. 15:28; Romanos 8:16). Observe, também, a conexão existente entre obediência e o dom do Espírito, no versículo à nossa frente. "Parece que há acordo substancial de conceito entre esta conexão e João 14:15-16, que nos ensina que se um homem guardar os manda­mentos de Cristo, o Pai lhe concederá 'outro Consolador' que permane­cerá nele para sempre" (F.L. Cribbs, Perspectivas, p. 30; cp. v. 29, e veja as notas sobre 2:4).

5:33 / A repreensão de Pedro não conseguiu apaziguar o concilio. Já sensíveis diante da culpa, pela sua atuação na morte de Jesus, e suspei­tando que os apóstolos estavam deliberadamente tentando atirá-los à ruína moral pública, ouviram esta acusação franca (v. 30), e acabaram vendo suas suspeitas confirmadas, o que inflamou ainda mais sua ira contra os apóstolos. Lucas os descreve graficamente: se enfureceram, ou "ficaram serrados ao meio [no coração]". Sua reação imediata foi sentenciar os apóstolos à pena de morte, talvez sob a acusação de blasfêmia. Na verdade, a melhor razão para o concilio agir assim foi o atrevimento dos apóstolos em desafiar o Sinédrio, ao ensinarem uma doutrina que eles (pelo menos alguns de seus membros) repudiavam.

5:34-35 / Entretanto, um conselho mais sábio prevaleceu. O Sinédrio foi refreado por um de seus membros, um fariseu chamado Gamaliel (cp. 22:3). Pedindo aos apóstolos que se retirassem da sala, Gamaliel advertiu com veemência a seus colegas para que fossem extremamente cautelosos quanto ao que viessem a fazer contra aqueles homens, visto que Deus poderia estar do lado deles (cp. v. 39). Pode parecer estranho que um fariseu, membro de uma seita que muitas vezes criara atritos com Jesus (p.e., Lucas 5:21, 30; 7:30; 11:53; 15:2; 16:4; veja também Lucas 11:39-52; 12:1; 16:15; 18:9-14), agora viesse em defesa dos seguidores de Jesus. Há ampla evidência, entretanto, que nem sempre houve só antipatia contra Jesus da parte dos fariseus (cp. Lucas 7:36; 11:37; 14:1; João 3:1ss.; 7:50; 19:39). De qualquer modo, esse caso era muito diferente daquele que antes os dividira. Naquela época, a questão havia sido a forma de guardar a lei. Os fariseus tinham um modo muito claro de interpretar o modo por que a lei deveria ser seguida, por isso quando viram que Jesus não se conformava com seus parâmetros, alguns deles chegaram ao ponto de tramar-lhe a morte (Marcos 3:6, embora no fim fossem os saduceus e não os fariseus que se responsabilizaram pela morte de Jesus; veja a disc. sobre 4:1 s.). Nesse aspecto nada havia mudado. Os fariseus foram rápidos em condenar Estevão, como haviam sido na condenação de Jesus, quando a lei estava em jogo (veja a disc. sobre 6:12-14; 8:1). Não obstante tudo isso, fariseus e cristãos tinham muitas coisas em comum, uma das quais, não a menor, era sua crença na ressurreição dos mortos, conquanto poucos fariseus a aceitassem nas bases aceitas pelos cristãos (veja a disc. sobre 4:2; cp. 15:5; 23:6ss.; 26:4ss.). Foi isto que levou Gamaliel a assumir a defesa dos apóstolos. Os saduceus repudiavam a doutrina da ressurreição, e os fariseus sentiam grande alegria em assumir qualquer causa contra eles (cp. 23:6-9). Visto que os fariseus constituíam um poder político considerável, quando um deles falava os saduceus, sem dúvida, prestavam-lhe toda atenção.

5:36-39 / Gamaliel argumentou, por um lado, que se aquilo não passasse de um movimento humano, logo haveria de desaparecer (v. 38, gr. "ser desarraigado", como ocorreria no caso de uma rebelião), pois lhes faltava o líder, como já havia acontecido a outros movimentos. No passado recente, Gamaliel fez com que se lembrassem que tinha havido um Teudas (v. 36) e Judas, o galileu (v. 37), os quais haviam sido mortos e seus seguidores se espalharam. Por outro lado, se o movimento cristão se originara em Deus, como eles poderiam resistir-lhe? Tal conselho era tipicamente fariseu, tanto no tom quanto no conteúdo. Foi um raciocínio baseado no principal ponto de sua teologia, a saber, que Deus governa o mundo mediante sua sábia providência que cobre tudo e todos. Diziam os fariseus que tudo está nas mãos de Deus, exceto o temor do Senhor; com isso eles queriam dizer que Deus é soberano, e que a parte humana consiste em simplesmente obedecer, e deixar as questões nas mãos de Deus. Os saduceus, ao contrário, mantinham a doutrina da autodetermi­nação humana. Apesar dos pesares, pelas razões mencionadas antes (veja a disc. sobre os vv. 34-35), o concilio seguiu o conselho de Gamaliel (v. 38s.).

5:40 / Os apóstolos foram chamados de volta e sentenciados à pena do açoite. A acusação de blasfêmia (se é que essa teria sido a acusação) aparentemente fora retirada. Permanecera a acusação menor, a de deso­bediência. Era da competência do Sinédrio, bem como dos tribunais inferiores das sinagogas, tanto a lavratura de sentenças quanto sua execução, sem pedir autorização às autoridades romanas em qualquer caso, menos o da pena capital (cp. 22:19; Marcos 13:9; 2 Coríntios 11:24). A maior pena prescrita pela lei, para uma ofensa de menor monta, eram quarenta açoites (Deuteronômio 25:2s.), embora na prática esse número se reduzisse a trinta e nove, pelo temor de exceder-se o número máximo. A punição em geral era executada com um açoite de três fios; em alguns casos em que a pena máxima fora aplicada, as vítimas morreram em conseqüência dos ferimentos (b. Makkoth 3.14; cp. tam­bém b. Sanhedrin 9.5). Assim é que, embora fosse considerada uma penalidade de menor monta, era bastante severa; neste caso, podemos supor que os apóstolos sofreram a plenitude da severidade da lei. Depois receberam a ordem (a qual teve o mesmo tratamento de antes, cp. v. 42) que não falassem no nome de Jesus ("sobre o nome..."; veja a disc. sobre 4:18), e a seguir foram libertados.

5:41 / Se uma das profecias do Senhor dos apóstolos, Jesus Cristo, havia se cumprido em tudo isso (João 16:2), outra seria cumprida a seguir (Mateus 5:1 ls.)- A despeito da punição dos açoites, os apóstolos retira­ram-se da presença do Sinédrio regozijando-se, porque tinham sido julgados dignos de padecer afronta pelo nome de Jesus (cp. 21:13). A descrição que Lucas faz nos prove um exemplo notável de algo sublime — "digno de passar por desgraça" — embora o evento em si mesmo houvesse de tornar-se tão comum na igreja (cp. 16:23ss.; Roma­nos 5:3s.; 2 Coríntios 6:8-10; Filipenses 1:29; 1 Pedro 1:6; 4:12-16). O que esses apóstolos suportaram nos traz à memória a observação de Paulo em 2 Coríntios 4:17: "Pois a nossa leve e momentânea tributação produz para nós eterno peso de glória, acima de toda comparação".

5:42 / A narrativa chega ao fim com outro esboço da vida da igreja (veja a disc. sobre 2:42-47). Os apóstolos não cessavam de ensinar e anunciar a Jesus, o Cristo — principalmente os apóstolos, mas os crentes em geral também, em público (no templo) e em particular, nas reuniões que os crentes promoviam nas casas-igrejas (veja a nota sobre 14:27). A mensagem deles era, em essência: "O Messias chegou na pessoa de Jesus". Isto deve ter sido um espinho na carne dos saduceus, de modo especial, visto que esta afirmação no nome de Jesus sempre se baseava no fato de sua ressurreição, mas eles pouco podiam fazer, visto os cristãos estarem ganhando popularidade, e os fariseus estarem indis­postos a ficar ao lado dos saduceus contra os crentes (veja a disc. sobre 6:12ss.).

 

Notas Adicionais #13

5:21 / Convocaram o Sinédrio e todos os anciãos dos filhos de Israel: lit., "Chamaram para a reunião o concilio e todo o senado dos filhos de Israel". Todavia, seria o senado, como alguns têm sugerido, um corpo administrativo diferente do Sinédrio — talvez constituído por homens idosos, experientes, a quem se pediu que se filiassem ao concilio como assessores, ou que constituíam outra assembléia, diferente, talvez maior do que o Sinédrio, sendo convocado só em ocasiões especiais? Esse termo não se encontra em nenhuma outra parte do Novo Testamento, mas na LXX é empregado em vários lugares como sendo o próprio Sinédrio (1 Macabeus 12:6; 2 Macabeus 1:10; 4:44; 11:27); por essa razão, e porque nos vv. 27 e 34 "Sinédrio" é termo empregado sozinho, é melhor considerar aquele e na tradução de ECA e na literal, como sendo simples recurso explicativo da frase toda, com a intenção de enfatizar que se tratava de uma reunião plena desse concilio.

5:31 / Salvador: Às vezes se sugere que este título veio a ser usado apenas após a igreja ter passado pelo ambiente helenístico. Aqui já havia muitos "salvadores", um dos quais, não o menor, era o próprio imperador. Todavia, nenhum cristão podia afirmar: "César é o Salvador". Não teria sido muito natural que eles transferissem esse título para Jesus que era, afinal, "outro rei" para os crentes (17:7)? Entretanto, esse termo não é peculiarmente helenístico; o solo onde medrou essa idéia, e de onde se teria projetado para o uso cristão, talvez fosse o Antigo Testamento, embora a atmosfera prevalecente para a adoração de César possa ter apressado seu crescimento.

No Antigo Testamento, Deus é o Salvador, e quando a salvação de que ele é o autor foi encontrada em Cristo, o título de Salvador foi facilmente atribuído a Jesus.

5:34 / Certo fariseu, chamado Gamaliel: era filho de Simão e, talvez, neto de Hillel (de acordo com uma tradição posterior, duvidosa). É certo que era o pai do primeiro patriarca judeu após a queda de Jerusalém, a quem chamamos de Gamaliel II. Representava a ala liberal de seu partido, em oposição à de Shammai. É fácil explicar a influência que Gamaliel exercia sobre o Sinédrio. Já observamos que os fariseus, embora fossem minoria no concilio, detinham o poder político para impor sua vontade sobre a maioria (veja a disc. sobre 4:5). Além disso, Gamaliel era pessoa altamente respeitável. Foi o primeiro a quem se deu o título de Rabban ("nosso mestre"), título superior ao de Rab ("mestre") e ao de Rabbi ("meu mestre"). Mais tarde, dir-se-ia a seu respeito: "Desde que o Rabban Gamaliel morreu, não existe mais reverência para com a lei, e morreram também, ao mesmo tempo, a pureza e a abstinência" (m. Sota 9.15).

5:36-37 / Levantou-se Teudas... Depois deste levantou-se Judas, o galileu: Lucas coloca na boca de Gamaliel a citação de dois casos em que os movimentos revolucionários deram em nada. O primeiro foi comandado por um tal de Teudas. Josefo também menciona um Teudas que se dizia profeta, e que reuniu "grande parte do povo" ao seu redor. Esta rebelião foi sufocada pelo procurador Crispo Fado. Alguns dos seguidores de Teudas foram mortos, e outros, capturados. O próprio Teudas morreu decapitado (Antigüidades) 20.97-99). Entretanto, se o Teudas de Josefo é o mesmo de Lucas, temos pela frente uma discrepância cronológica muito séria. O de Lucas teria chefiado sua insurreição nos dias do recenseamento, isto é, antes de cerca de 6-7 d.C, enquanto Josefo coloca o seu Teudas no reinado de Cláudio, cerca de 44-45 d.C. Seriam eles o mesmo Teudas? Visto que Josefo prossegue e passa a falar de Judas, há muitos que afirmam serem ambos a mesma pessoa, e que Lucas teria obtido sua informação de Josefo, cometendo um erro ao fazê-lo, ao deixar de notar que a referência do historiador judeu a Judas é parentética e que, na verdade, Judas havia precedido Teudas. Ao comparar os dois relatos, pouca coisa existe capaz de indicar que Lucas teria utilizado a informação de Josefo, e muita coisa há que aponta para uma data anterior para Lucas, do que teria sido possível, se ele houvesse tomado um empréstimo de Josefo (Antigüidades apareceu cerca de 94 d.C). Entretanto, é possível que Josefo nos arranje uma solução. Ao descrever os eventos que precederam a rebelião de Judas, assim se expressa o historiador: "Por essa época [isto é, nos dias em que Varo era o governador da Síria] houve mais dez mil desordens na Judéia, que pareciam tumultos" Antigüidades 17.169-270). Destes inumeráveis distúrbios, Josefo fornece um relato de não mais do que quatro, embora no mesmo capítulo ele acrescente: "A Judéia estava cheia de roubos e sempre que as várias quadrilhas e facções de rebeldes conseguiam arranjar alguém que os chefiasse, esse era imediatamente feito rei". Então, em meio a tantas rebeliões, das quais se fala, sem que sejam descritas, não é difícil imaginar que uma delas tenha sido chefiada por outro Teudas. Esse nome é contração de Teodoro, ou Teodoto ("Dom de Deus"), não era incomum, mas apelava muito aos judeus, por ser o equivalente grego de uma porção de nomes hebraicos. Nesta base, o Teudas de Lucas tem sido identificado com Matias ("Dom"), filho de Margaloto, um rebelde do tempo de Herodes, o Grande, que se destaca bastante na narrativa de Josefo (Antigüidades 18.147-150). É claro que esta identificação não pode ser comprovada.

Se a exatidão de Lucas tiver sido questionada no caso de Teudas, é notavel­mente confirmada no caso da referência a Judas. É que Gamaliel fala de sua insurreição como tendo dado em nada — e Gamaliel não podia falar de modo diferente nessa época — (digamos que teria sido ao redor de 34-35 d.C); todavia, ele não poderia falar assim cerca de dez anos depois, quando os seguidores de Judas uniram-se novamente, a fim de formar o que Josefo chama de "a quarta filosofia dos judeus" (Guerras 2.117-118; Antigüidades 18.1-10). Mais tarde seriam conhecidos como os zelotes (veja BC, vol. 1 pp. 421ss.). Só Lucas (relatando as palavras de Gamaliel) menciona que Judas foi executado. O recenseamento a que Lucas se refere, em conexão com Judas, foi feito em 6-7 d.C, depois de Arquelau ter sido deposto, e a Judéia posta sob domínio romano. O recenseamento dizia respeito à introdução de novo imposto, contra o qual Judas se rebelara (Antigüidades 18:1-10).

5:38-39 / Se este conselho ou esta obra é de homens, se desfará, mas se é de Deus... : Se este conselho pode referir-se de modo específico à intenção dos apóstolos de desafiar o Sinédrio mediante a pregação de Cristo (v. 19; cp. 4:20) e ou esta obra pode referir-se à pregação evangélica em geral. A mudança no texto grego, em que a primeira das duas orações condicionais traz o verbo no subjuntivo, mas na segunda o verbo está no indicativo, pode significar que a segunda alternativa é a mais viável. Mas a linguagem é de Lucas, e não de Gamaliel.