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Características e objetivo de Atos dos Apóstolos
Características e objetivo de Atos dos Apóstolos

   Escrever, em sua segunda obra, um primeiro ensaio da “história da igreja” foi um empreendimento audacioso do autor do terceiro evangelho! Esse simples fato já revela o impulso e a atuação do Espírito de Deus no coração desse homem. De uma maneira completamente nova, ele compreendeu a palavra e a incumbência do Senhor Jesus no dia da Ascensão, motivo pelo qual nesse momento também foi capaz de expor a importância desse dia com clareza maior do que no final de seu evangelho. Ele obteve a certeza de que o retorno de Jesus não é o alvo imediato subseqüente, no qual se concentram todos os pensamentos, mas o retorno é precedido por um acontecimento de máxima importância, ao qual a igreja de Jesus agora deve dedicar todas as suas forças. Esse acontecimento é a expansão do evangelho de Jerusalém até os confins da terra, traçando círculos cada vez mais amplos. Sem dúvida, o próprio Jesus havia falado a esse respeito justamente em seu discurso sobre os tempos finais: “E será pregado este evangelho do reino por todo o mundo, para testemunho a todas as nações. Então, virá o fim” (Mt 24.14). Para nós, isso se tornou algo “óbvio” ao longo dos 1900 anos de história de missões e da igreja. Para Lucas, porém, era uma nova descoberta compreender que Jesus continua a agir e ensinar em seus mensageiros e suas testemunhas, através do Espírito Santo, e que essa ação do Senhor também faz parte do “evangelho”. Cumpre, por isso, notá -lo e descrevê-lo como continuação do primeiro livro. Que compreensão de fé acerca da “história da igreja” Lucas nos possibilitou com esse trabalho! Cabe-nos agradecer muitíssimo a ele e ao Espírito Santo, que o iluminou desse modo.

Com essas palavras já articulamos o objetivo do livro. É verdade que o título alemão “História dos Apóstolos” se evidencia como dado a equívocos. Nos primeiros capítulos, “os apóstolos” sem dúvida aparecem como um grupo coeso, que também agia em conjunto. Porém na primeira metade do livro é somente de Pedro que obtemos um elato concreto. Por outro lado, o interesse do autor também não se volta para “Pedro” como tal. Nada é dito sobre a continuação de sua atividade depois do concílio dos apóstolos, nem mesmo acerca de sua morte. João é mencionado apenas secundariamente no início. E também Paulo, cujas viagens missionárias e cujo processo preenchem a segunda parte do livro, não tem qualquer importância biográfica. Lucas omite muitas experiências essenciais que o próprio Paulo menciona em suas cartas, e não dedica uma palavra sequer ao desfecho do ulgamento e ao martírio do apóstolo. Na realidade, seu objetivo não é escrever uma “história dos apóstolos”. mportância tem unicamente o curso do evangelho pelo mundo. Diante dele, todos os instrumentos humanos deixam de ser importantes. Isso é genuinamente bíblico! De maneira idêntica, o AT também carece de qualquer nteresse “biográfico” e de qualquer “culto a heróis”. Apenas Deus e sua magnífica causa estão em jogo. É isso que precisamos reaprender, mesmo a partir da forma como se desenvolve a história descrita de Atos dos Apóstolos.

Essa é a razão por que o livro tampouco constitui uma “obra historiográfica” no sentido atual. De acordo com nossos padrões modernos, ele é muito imperfeito e incompleto. Ocorre, porém, que nem o próprio livro pretende corresponder a esses padrões. Lucas é capaz de dedicar uma única frase a etapas inteiras da evolução histórica e a rabalhos importantes e, por outro lado, ilustrar detalhadamente um acontecimento isolado. Lucas dispensa dois versículos ao profícuo trabalho de Paulo em Éfeso durante dois anos, mas dedica sete versículos ao episódio com os filhos de Ceva [At 19.14], até dezoito à agitação dos ourives! Não ouvimos palavra alguma em Lucas a respeito da grande tribulação na província da Ásia, que foi tão marcante para o próprio Paulo (2Co 1.8-11). Nada é dito acerca da longa e ardente discussão com a igreja em Corinto, que se reflete nas cartas à mesma. Lucas tem um estilo completamente peculiar de relatar e selecionar episódios dentre a enorme abundância dos materiais. Em lugar de fornecer uma descrição geral e contínua da história, prefere fazer-nos vivenciar o curso dos acontecimentos com base em episódios isolados, ilustrados com grande plasticidade.

Conseqüentemente, o título grego da obra – “práxeis apostólon” = Ações dos Apóstolos” – parece mais apropriado. Havia, na Antigüidade, toda uma literatura de “práxeis”, obras que relatam de maneira solta e plástica uma série de acontecimentos da vida de homens famosos. Não estaremos argumentando contra a direção do Espírito se considerarmos que Lucas, ao escolher a modalidade de exposição de sua obra, tivesse aderido a essa orma literária de seu tempo, assim como também o apóstolo Paulo, cheio do Espírito, seguiu o estilo de carta de sua época. Contudo, não é provável que o próprio Lucas tenha escolhido pessoalmente o título “práxeis apostólon”. Na única vez em que a palavra “práxeis” ocorre em Atos dos Apóstolos, ela tem a conotação nefasta de “práticas de magia” (At 19.18). Sobretudo, porém, não obstante várias semelhanças na forma, a obra de Lucas está tão distante dos antigos escritos de “práxeis” em termos de conteúdo e essência, que nem mesmo o atual título grego consegue enquadrá-la nessa categoria literária.

A partir da constatação de que Atos dos Apóstolos não é uma “obra historiográfica” no sentido moderno, houve quem salientasse que Lucas nem sequer tinha a intenção de descrever objetivamente a história, mas sim escrever para a “edificação” de seus leitores.

Em visto disso, deveríamos ler Atos dos Apóstolos como “livro edificante”, não nos deixando atormentar pelo “historismo”. Dessa maneira, porém, introduzimos idéias modernas e deturpadas de forma perigosa na obra de Lucas. No âmbito do NT, a “edificação” ainda é uma ação muito objetiva, voltada à “construção” da igreja. Está alicerçada sobre a ação real de Deus. “Edificação” como sentimentalismo gerado através de “histórias” comoventes, cuja veracidade histórica não possui grande importância, é algo completamente alheio ao ser humano dos tempos bíblicos. Se o anjo não retirou Pedro de fato da prisão de segurança reforçada então esse capítulo de Atos dos Apóstolos tampouco é “edificante”, não para Lucas, nem para seus leitores daquele tempo, nem para nós.

f – Além da “edificação”, o alvo de Atos dos Apóstolos foi considerado como sendo a “defesa” do novel cristianismo perante o Estado romano. Essa seria a razão pela qual Lucas apresenta Paulo repetidamente declarando e comprovando enfaticamente ser pertencente a Israel, para que fique claro para o Estado romano que o cristianismo pertence ao judaísmo e é, por conseqüência, uma “religio licita”, uma religião tolerada pelo Estado. E a postura benevolente e respeitosa dos funcionários e oficiais romanos, que afirmam a inocência de Paulo, seria um espelho oferecido por Atos dos Apóstolos aos funcionários públicos do início do segundo século. No entanto, será que Lucas teria superestimado tão fantasticamente a influência de seu livro? Afinal sua obra não foi impressa com grande tiragem, de sorte que caísse nas mãos de todos os funcionários do Império Romano! E porventura ele não estaria obstruindo exatamente esse alvo, ao também descrever de forma tão marcante como os grupos dirigentes judeus rejeitavam ferrenhamente a Paulo e ao cristianismo?

g – Não, na dedicatória do primeiro volume, o evangelho, o próprio autor define de maneira simples e clara o alvo do livro: “Para que tenhas plena certeza das verdades em que foste instruído” (Lc 1.4). Que argumento nos autorizaria a especular acerca desse propósito em relação à continuação da obra em Atos dos Apóstolos? Pelo fato de que entrementes Lucas compreendera que o “evangelho” não acabara com a despedida de Jesus, mas continuava seu próprio curso pelo mundo, ele também continuou escrevendo à mesma pessoa, com o mesmo objetivo. E por isso escreveu dessa forma: não uma história sobriamente “objetiva” do primeiro cristianismo, tampouco uma apresentação dos apóstolos com sua vida e atuação completas, mas um testemunho do admirável caminho que o evangelho percorreu, saindo de Jerusalém e indo para Samaria, Antioquia, Ásia Menor, Macedônia e Grécia até a capital do mundo, Roma. A estrutura do livro corresponde a esse percurso.