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Atos 19:23-41
Atos 19:23-41

Atos 19.23-41: Tumulto em Éfeso 

 

Antes de iniciar sua narrativa da viagem, Lucas precisava relatar mais uma história da estada de Paulo em Éfeso. Sendo o tumulto criado pelo ourives uma boa história, seria razão quase suficiente para que ele a incluísse. Todavia, esse caso tem a atração extra de reforçar o ponto de vista anteriormente registrado de que a fé cristã e o estado romano eram compatíveis, conforme o confirma a atitude dos asiarcas e do escrivão da cidade (veja a disc. sobre 18:1-17). Diga-se de passagem, esta história revela um conhecimento preciso das instituições municipais de Éfeso (veja Sherwin-White, pp. 83ss.).

19:23-24 / As últimas semanas da estada de Paulo em Éfeso foram marcadas por um daqueles "perigos na cidade" de que ele fala (2 Coríntios 11:26). Certo Demétrio instigou um tumulto por causa do Caminho (v. 23; veja a disc. sobre 9:2). Demétrio era ourives em cuja oficina se fabricavam miniaturas do templo de Diana (v. 24), compe­tindo no mercado altamente lucrativo de Éfeso nessas coisas (cp. Dio Cassius, Roman History 39.20; Ammianus Marcelino, History 22.13). São muitos os exemplares de templos de terracota e mármore, mas surpreendentemente não se encontrou nenhum de prata. É possível que Demétrio tivesse investido muito nesse negócio, mas não era essa a única razão que o levou a tomar a iniciativa do tumulto. Ele o fez pelo fato de ser o presidente do sindicato dos ourives naquele ano.

19:25-27 / Seu propósito era envolver todos os profissionais de alguma maneira relacionados com aquele comércio numa demonstração de protesto contra os cristãos. A época poderia ter sido a da festa à deusa Diana, quando a cidade deveria estar abarrotada de visitantes, e os sentimentos religiosos e nacionalistas em ascensão. Convocou-se uma reunião, e, no que concerne a Demétrio e seus colegas, ficou claro desde o início que as considerações de ordem econômica eram da maior importância (veja a disc. sobre 16:19). O ourives colocou o dedo num ponto que havia sido muito saliente na pregação de Paulo, a saber, que não são deuses os que se fazem com as mãos (v. 26; cp. 17:29). Numa cidade como Éfeso, Paulo teria batido nessa tecla com excelentes efeitos, isto que ele conseguira, segundo foi dito na reunião, convencer uma grande multidão, tanto em Éfeso como noutras cidades da província (v. 26). Na verdade, é provável que Paulo houvesse prejudicado pouco a adoração a Diana e, em razão disso, pouco havia atrapalhado os negócios de Demétrio. O ourives estava apenas preocupado com o perigo de algum prejuízo contra o negócio (que a profissão caia em descrédito, isto é, um recesso na promoção da idolatria). O apelo dele aos sentimen­tos religiosos dos efésios era hipócrita, pois sabia que embora o povo pouco se interessasse pelo negócio dos ourives, interessava-se muito por Diana.

19:28-29 / Demétrio era um demagogo perito em manipular a multi­dão. Ao ouvi-lo, encheram-se de ira, e clamaram [ou "ficaram conti­nuamente clamando"]: Grande é a Diana dos efésios! Talvez se hou­vessem reunido numa das salas do sindicato, mas agora vamos imaginá-los percorrendo as ruas (como o texto ocidental diz), numa passeata pela cidade toda, sempre gritando e convocando mais gente pelo caminho. O objetivo deles era o teatro — lugar usual para reuniões públicas na maioria das cidades (cp. Josefo, War 7.43-53; Tácito, History 2.80), e no presente caso o lugar foi bem escolhido para instigar mais ainda o povo, visto que do teatro se tinha uma vista panorâmica total do templo de Diana. Em sua marcha, o povo arrebatou a Gaio e a Aristarco, macedônios, companheiros de Paulo (v. 29). Aristarco era de Tessalônica, e mais tarde haveria de viajar com o apóstolo para Jerusalém (20:4). Gaio tem sido às vezes identificado com o Gaio membro do mesmo grupo, mas, como lemos em 20:4, aquele homem era gaiata, e não macedônio. Não ficamos sabendo se o populacho deparou com esses dois por acaso e os prendeu, por serem bem conhecidos como cristãos, ou se deliberadamente partiu à procura da equipe de missioná­rios e prendeu esses dois por não ter encontrado Paulo.

19:30-31 / Ao tomar conhecimento do que acontecia, Paulo desejou enfrentar o "demos" pessoalmente (assim diz o grego), embora aquilo fosse menos uma assembléia de cidadãos e mais uma gentalha selvagem (cp. 1 Coríntios 15:32). Mas os discípulos não lhe permitiram (v. 30), e também algumas das autoridades da Ásia, amigos de Paulo, acres­centaram suas vozes às dos discípulos para que não se apresentasse no teatro (v. 31). Estas autoridades eram os asiarcas (veja a disc. sobre o (v. 1). Não eram estritamente autoridades da Ásia, mas num sentido mais amplo faziam parte do sistema, sendo digno de nota que tais homens fossem contados entre os amigos de Paulo. O mandato de um asiarca era de um ano (podendo ser reeleito), mas a um asiarca aposentado eviden­temente se permitia conservar o título. Por isso, uma cidade como Éfeso poderia ter vários asiarcas.

19:32 / Lucas emprega aqui o termo técnico para uma reunião do demos (gr. ekklesia), mas o comportamento do povo não fez justiça ao nome, pelo que nos versículos seguintes Lucas volta a falar de "multidão" (essa e a expressão grega nos vv. 33, 35). A maior parte das pessoas nem sequer sabia por que estavam ali, mas de qualquer modo "continuavam a gritar" (imperfeito), "uns... de uma maneira, outros de outra".

19:33-34 / Uma pessoa interessada tentou fazer-se ouvir, mas não sabemos exatamente de que modo Alexandre enquadra-se nisso. (É ele o latoeiro Alexandre, de 2 Timóteo 4:14s. e o mestre herético de 1 Timóteo 1:19s.? ) Há incertezas tanto a respeito do texto grego quanto da tradução, mas é provável que devamos considerar esse Alexandre como alguém que age sob o comando dos judeus (veja as notas), e tentando falar em prol deles a fim de dissociá-los dos cristãos. Entretanto, quando Alexandre fez um gesto com a mão, como que pedindo para falar (veja a disc. sobre 13:16), a multidão o reconheceu como sendo judeu (pelo vestuário? ) e clamou com insistência, calando-o. O populacho compro­vou a sabedoria dos amigos de Paulo que lhe recomendaram ficasse longe do teatro. Durante cerca de duas horas prosseguiu o clamor que alguém iniciara na reunião anterior: Grande é a Diana dos efésios! (v. 34; cp. v. 28). Talvez considerassem essa cantilena infernal um ato de culto. Argumenta Ramsay que não se deveria introduzir verbo nenhum aqui (não há verbo no original), já que as palavras não formam sentença, uma declaração de fato, mas uma apóstrofe, um brado de culto - "Grande Diana dos efésios! "(Church, pp. 135ss.). Deveria ser um ruído ensurde­cedor. A acústica do teatro até hoje é excelente, e melhor ainda naquela época por causa dos vasos sonoros de bronze e argila colocados por todo o auditório (cp. 1 Coríntios 13:1).

19:35-37 / Finalmente o escrivão da cidade conseguiu controlar a multidão. Esta tradução de seu título (que Lucas empregou de modo correto) é enganosa, visto ser esse oficial a mais alta autoridade civil de Éfeso. A posição dele ficou registrada em moedas e inscrições. Era o principal magistrado da cidade; percebemos em sua fala um travo de desprezo pela multidão, e a consciência de sua própria autoridade, coisa de esperar-se de tal personagem. Ele iniciou observando as ligações estreitas entre a cidade e o templo — um afago na vaidade excitada do povo. Éfeso, declarou ele, havia sido universalmente aclamada como a guardadora do templo da grande deusa Diana, e da imagem que caiu de Júpiter (v. 35; veja a disc. sobre o v. 1). Esta última referência talvez seja a um meteorito, tomado como se fosse a imagem da deusa (possi­velmente muito tempo antes de os gregos terem fundado a cidade). Casos semelhantes são atestados noutros lugares, de modo especial no templo de Cibele e Pessinus. Admitimos não haver evidências de que se preser­vou uma pedra em Éfeso, mas é difícil saber que outro sentido se pode atribuir a diopetes, "caído do céu". Esta palavra pode ter sido a resposta do escrivão da cidade ao ataque cristão contra "deuses feitos por mãos" (v. 26). Tal imagem, implicou o oficial, não havia sido feita por mãos; ela viera do céu. Todavia, havendo pronunciado uma réplica gentil (se é que foi réplica gentil) ele entendeu que nada mais havia a fazer-se a respeito dos cristãos. Não se levantaram acusações específicas contra Aristarco e Gaio e, tanto quanto o escrivão sabia, não havia razões para pensar que alguém os acusasse. Não haviam roubado os templos (não são sacrílegos), que no mundo antigo serviam como depósitos seguros, e tampouco eram blasfemadores da vossa deusa. A ironia está em que há uma inscrição dessa época que revela que a tremenda riqueza depo­sitada no templo de Diana deveu-se a suborno e corrupção pelas mãos dos oficiais da cidade. Assim comenta Hanson: "O escrivão da cidade talvez não houvesse gostado nem um pouco da idéia de que esse tumulto no teatro, a respeito do templo de Diana, pudesse conduzir a uma auditoria rigorosa nas contas do templo" (p. 197).

19:38 / O caminho certo, diz Hanson, seria Demétrio e os demais tomarem as queixas recebidas e levá-las às autoridades apropriadas nos dias marcados para tais coisas (lit, "dias de mercado"). O escrivão se referira aos tribunais presididos pelo governador provincial ou por seus deputados, que viajavam pelas principais cidades da província para esse propósito. Novamente Lucas emprega o termo correto, em grego, para o governador de uma província senatorial (veja a nota sobre 13:7), mas ele o empregou no plural. Isso tem levantado muitos comentários. Pode tratar-se de um plural genérico e nada mais: "há uns oficiais chamados de procônsules". Mas a expressão de Lucas pode descrever um caso real. No outono de 54 d.C, dois emissários de Nero, Celer e Aelius, envene­naram o procônsul da Ásia, M. Junius Silvanus, por instigação da imperatriz Agripina, e juntos governaram a província até que a substi­tuição deles chegou, no verão de 55 d.C. Celer e Aelius poderiam ter sido os "procônsules" deste versículo, e o mandato deles teria sido uma época de grande desassossego, ao ponto de o protesto do ourives assumir aquela forma de rebelião.

19:39-41 / Caso os tribunais falhassem, Demétrio poderia levar seu processo, se este existisse, à assembléia pública. Todavia, o escrivão teve o cuidado de enfatizar que deveria ser "em legítima assembléia" de cidadãos. Sob as melhores circunstâncias, os romanos não viam tais assembléias com bons olhos; se considerassem que as mesmas estavam em flagrante desrespeito à lei e à boa ordem, os romanos simplesmente retirariam a permissão de realizá-las. Conforme estipulado, tais reuniões da assembléia eram rigorosamente controladas quanto às datas, de modo que a atual reunião era completamente irregular. Se os romanos fizessem uma investigação sobre a questão, os próprios efésios estariam sob risco de um processo. Tais palavras tiveram o efeito de tranqüilizar a multidão, de modo que o escrivão conseguiu dispersá-la sem maiores incidentes. Pelo que sabemos, Demétrio desistiu de prosseguir na acusação.

 

Notas Adicionais # 51

19:24 / Demétrio, que fazia de prata miniaturas do templo de Diana: Há um título, ho neopoios ("reparador de templos"), que segundo informações era o título dado ao responsável pela edificação do templo de Diana. Com base nisso, levanta-se a sugestão de que Demétrio teria sido um neopoios, mas que Lucas se teria enganado, tomando seu título como descrição de seu ofício, a saber, naopoios, "edificador de templos". Uma inscrição efésia talvez do primeiro século d.C, que dá o nome de Demétrio a um neopoios, empresta algum apoio a essa sugestão. Por outro lado, A. Deissmann refere-se a outra inscrição encontrada no teatro de Éfeso, segundo a qual um distinto oficial romano, C. Vibius Salutaris, apresentou uma imagem de prata de Diana (Ártemis), e outras estátuas "para que fossem colocadas em todas as assembléias (ekklesiá) públicas no teatro, sobre pedestais" (Light from the Ancient East, p. 113). Embora não seja isso exatamente que Lucas descreve, empresta um pouco de apoio ao seu texto. É preciso notar, além disso, que Lucas não emprega o termo naopoios de Demétrio, maspoion naous, "fabricante de relicários".

19:33 / Então tiraram Alexandre dentre a multidão: O grego não deixa claro quem é o sujeito do verbo. NIV presume que o sujeito é um ou mais componentes da multidão, visto que no grego esta oração vem logo após o v. 32, e Lucas nenhuma indicação dá quanto a mudança de assunto. Nós, porém, decidimos presumir que os judeus, mencionados como tendo empurrado Ale­xandre para a frente, são também o sujeito do verbo, isto é, presumimos que alguns judeus da multidão deram-lhe instruções. Alguns textos fazem que a multidão "chegue à conclusão" de que Alexandre teria sido o responsável pela reunião, enquanto outros textos fazem que "Alexandre foi atirado" ou "foi colocado à frente". Estas versões, contudo, não têm total apoio textual, sendo talvez resultado do embaraço de algum escriba.

19:37 / Não são sacrílegos: O termo empregado aqui no sentido de "ladrões de templos" encontra-se noutras passagens com referência especial a Éfeso (Strabo, Geography 14.1.22; Pseudo-Heraclito, Letter 7; cp. Romanos 2:22). O substantivo cognato ocorre numa inscrição de Éfeso que descreve um crime punível com as mais pesadas penalidades.