Criar um Site Grátis Fantástico
Atos 9:19b-31
Atos 9:19b-31

Atos 9.19b-31: Saulo em Damasco e em Jerusalém 

 

Vemos aqui como Paulo assumiu com toda seriedade sua nova voca­ção de um homem "salvo para servir". Mas o padrão para os Doze havia sido primeiro ficar com o Senhor Jesus e, depois, ser enviado (Marcos 3:14), de modo que logo Paulo sentiu a necessidade de estar a sós com o Senhor durante algum tempo (cp. Marcos 6:31). Quanto a este ponto, seus próprios escritos acrescentam vários pormenores à narrativa de Lucas.

9:19b-22 / Sendo portador de uma comissão da parte do Sinédrio, Paulo deveria pregar nas sinagogas de Damasco, e foi isso mesmo que ele fez, utilizando as sinagogas como as haveria de utilizar em suas viagens posteriores, como ponto de pregação evangelística (cp. 13:5; 14ss.; 14:1; 16:13; 17:ls., 10; 18:4, 19; 19:8; 28:17, veja a nota sobre 13:14). A mensagem desse fariseu pegou seus ouvintes de surpresa (v. 21), visto que ele pregava a respeito de Jesus, não contra Jesus, decla­rando ser este o Filho de Deus (v. 20). Para os ouvidos judaicos, esta frase podia significar várias coisas, mas o mais importante nesse aspecto é que era o título do rei (p.e., 2 Samuel 7:14; Salmo 2:2 e 89:27, 29) e, por extensão, o título do rei escatológico, o Messias (Enoque 105:2; 4 Esdras 7:28, 29; 13:32, 37, 52; 14:9). Era pelo menos nesse sentido que Paulo chamava a Jesus de Filho de Deus (veja o v. 22 e a nota sobre 11:20), mas à vista de sua recente experiência, é possível que Paulo não estivesse longe do uso cristão distintivo que revela a natureza divina de Jesus. Só Paulo emprega esse título em Atos (13:33), não sendo mero acidente que tal título tenha tão grande importância nas suas cartas (p.e., Romanos 8:3; Gálatas 4:4; Colossenses 1:15-20) e apareça em seu próprio relato de seu chamado para ser apóstolo (Romanos 1:1-4; Gálatas 1:16). Com respeito a isto é também digno de nota que o verbo perseguia (v. 21, gr. porthein) não se encontra em nenhuma outra passagem no Novo Testamento, exceto em Gálatas 1:13 e 23, com referência à mesma questão mencionada neste versículo. Observe-se de novo a descrição dos cristãos como "os que invocavam este nome" (veja a disc. sobre o v. 14).

A referência no v. 22 não diz respeito à pregação de Paulo (como afirma GNB), mas ao próprio Paulo que se esforçava muito mais. Ele se interessava cada vez mais pela sua nova vida (note-se o tempo imperfeito; cp. Salmo 84:7). Sua pregação e o efeito que exercia sobre os ouvintes estão descritos na última metade do versículo. O verbo grego (lit., "colocar juntos", "comparar") que ECA traduz por "provar", sugere que a pregação de Paulo consistia principalmente de comparações que ele fazia entre o Antigo Testamento e os eventos da vida de Jesus, a fim de comprovar ser ele o Messias (quanto a outra observação relacionada à técnica de Paulo em pregar, veja a disc. sobre 17:3). Isto sugere que Paulo estava familiarizado com a vida de Jesus. De modo algum é este fato algo que nos surpreende. Até mesmo quando era um perseguidor da igreja, Paulo teria sabido muita coisa a respeito do Senhor mediante controvérsias e inquéritos judiciais, se é que já não tivesse agora infor­mações de primeiríssima mão. E a partir de sua conversão, talvez Paulo tivesse estado sob a instrução de Ananias e outros.

9:23-25 / Em Gálatas 1:17 Paulo diz que logo após sua conversão passou algum tempo na Arábia, e em 2 Coríntios 11:32s, ele nos dá mais alguns pormenores de sua estada em Damasco. Juntando tudo isso, parece que após sua estada inicial em Damasco, Paulo foi para a Arábia, o que talvez signifique Nabatéia (veja a nota sobre 2:9ss.). É possível que ele tenha estado ali durante dois ou três anos (os judeus contavam o tempo de modo inclusivo, de modo que esses "três anos" de Gálatas podem referir-se a um período ligeiramente superior a um ano completo), talvez pregando, mas meditando em profundidade nas coisas em que acreditava, à luz de sua experiência de conversão. Por fim, retornou a Damasco, sendo esse evento marcado talvez na narrativa de Lucas pelas palavras tendo passado muitos dias (v. 23). Por esta altura, os judeus da cidade ter-se-iam recuperado da surpresa gerada por sua conversão, e de maneira alguma tolerariam suas pregações a respeito de Jesus. Assim foi que planejaram matá-lo (cp. v. 29; 20:3, 19; 23:21; 25:3; 2 Coríntios 11:26), e, de acordo com 2 Coríntios, conseguiram recrutar o "que governava sob o rei Aretas" (NIV, governador) para que os ajudasse nessa tentativa.

Parece que por essa época Damasco caíra sob o poder dos nabateus. Seu rei, Aretas IV, tinha estado em guerra contra seu genro, Herodes Antipas. Morrendo Tibério em 37 á.C, com a conseqüente retirada de Vitélio, governador romano da Síria, cujo auxílio havia sido prometido a Herodes, Aretas poderia ter avançado para o norte até Damasco. Esta suposição baseia-se em parte na referência feita por Paulo, e comprova-se pelo fato de não haver moedas imperiais de Damasco a partir dos últimos anos da década de 30 até 62 d.C. Em 62-63 d.C. começa a aparecer a imagem de Nero, o que nos sugere que a cidade passara de novo ao domínio romano. Enquanto isso, por instigação dos judeus, o governador colocou guardas às portas da cidade, mantendo vigilância contínua, dia e noite, para prender Paulo. Só nos resta imaginar as razões por que os nabateus se envolveram. É possível que a pregação de Paulo na Nabatéia houvesse suscitado tumultos nas comunidades judaicas. Ou talvez os nabateus julgassem que lhes seria vantajoso cooperar com os judeus. Quem sabe Aretas queria ter no Sinédrio um aliado? Seja como for, eles se envolveram, e a vida de Paulo passou a correr risco. Mas Paulo não se viu desamparado. Certa noite "seus discípulos" (de Jesus) o desceram através de uma abertura no muro, e Paulo pôde escapar (v. 30; cp. Josué 2:15; 1 Samuel 19:12). Parece que Paulo considerava esse incidente um ponto sombrio de sua carreira marcada pelo sofrimento (2 Coríntios 11:30ss.).

9:26 / Quando, por fim, Paulo retornou a Jerusalém (de acordo com Gálatas 1:18, três anos depois de sua conversão), achou difícil ser aceito pela igreja. De modo particular ele desejava ver Pedro (Gálatas 1:18), mas nem Pedro nem ninguém queria vê-lo (cp. v. 13). Teriam ouvido a respeito de sua conversão, mas a partir de então talvez houvessem ouvido muito pouco, ou nada, a seu respeito. Não estavam muito seguros a respeito de Paulo. Na verdade, não acreditavam que fosse discípulo, e é natural que tivessem medo dele. Paulo não portava cartas de recomen­dação (cp. 18:27).

9:27 / Finalmente foi Barnabé que, trazendo-o consigo, levou-o aos apóstolos. De que forma Paulo e Barnabé entraram em contato um com o outro, ou por que Barnabé agora se dispôs a ajudá-lo, nós não o sabemos. Nenhuma base existe para supormos, como alguns comenta­ristas fazem, que ambos foram colegas de estudo em Tarso (veja a disc. sobre 22:3). É possível que a explicação esteja simplesmente no tipo de pessoa que Barnabé era. Observe-se a explicação que ele apresenta da conversão de Paulo. Suas palavras explicitam algo que só estava implí­cito na narrativa anterior, isto é, que Paulo vira o Senhor [Jesus] (v. também o v. 17). Observe-se também a ênfase sobre como em Damasco pregara ousadamente em nome de Jesus, salientando, talvez, que ele havia sido cheio do Espírito Santo, da mesma forma que os demais discípulos (veja a disc. sobre 4:13, 29, 31). Este relato do encontro de Paulo com os apóstolos pode apresentar divergências com a própria narrativa de Paulo em Gálatas l:18s., mas as diferenças são mais apa­rentes do que reais, e explicam-se pelo fato de os objetivos dos dois escritores serem diferentes. Era importante para Lucas demonstrar que Paulo fora aceito pelos apóstolos, enquanto que para Paulo, em Gálatas, era importante evidenciar sua independência deles. Portanto, Paulo esforça-se para salientar que dos Doze, ele só se encontrou com Pedro. Tiago, irmão do Senhor, também estava presente (veja a nota sobre 12:17). Gálatas informa-nos que sua visita foi muito curta, de duas semanas no máximo.

9:28-30 / Ganha a confiança de Pedro e de Tiago, Paulo passou a maior parte dessas duas semanas "entrando e saindo com eles" (assim diz o grego), o que talvez signifique que mantiveram várias reuniões em particular, nada tendo que ver com o ministério implícito em NIV. Paulo pregou em público, mas não ao ponto de tornar-se conhecido pessoal­mente das "igrejas da Judéia" (Gálatas 1:22). As aparições públicas de Paulo limitaram-se a "disputas" com os (judeus) helenistas. Lucas em­prega o mesmo termo para os debates dos "libertos" com Estevão (6:9), com a diferença que os papéis agora se invertem. Na passagem anterior, os homens da sinagoga é que disputavam com Estevão; aqui, é Paulo que disputa com eles. Mas seria a mesma sinagoga? É claro que não há modo de descobrirmos; porém, pelo menos é provável que Paulo os tenha selecionado pelo fato de terem participado da morte de Estevão. O caso é que Paulo falou com ousadia, a quem quer que ali estivesse, em nome do Senhor (v. 29); noutras palavras, a mensagem paulina centralizava-se no Jesus a quem Deus havia feito "Senhor e Cristo" (veja 2:36). O resultado foi que os helenistas atentaram contra a vida de Paulo. Quando os irmãos souberam disso, tomaram Paulo e acompanharam-no até Cesaréia, e o enviaram a Tarso (v. 30). Que os demais sejam chamados de irmãos sublinha a unidade da igreja de que Paulo agora era membro. A Cesaréia desta narrativa é a cidade portuária, o que explica a expressão "levaram-no para baixo" (para a praia; não explícito em ECA). O relato do próprio Paulo a respeito deste incidente, em 22:17-21, inclui uma visão que ele tivera no templo, na qual o Senhor lhe ordenou que fugisse de Jerusalém, pois ele o enviaria a outro lugar. A seguir, desce um véu sobre a vida de Paulo, que só reaparece no cenário dez anos depois (11:25ss.). A única coisa que sabemos é que durante esses anos ele pregou na "Síria e na Cilícia" (Gálatas 1:21). Também teriam sido anos de estudos (veja W. C. van Unnik, pp. 56ss., que sugere que seus estudos centralizaram-se na língua e na cultura gregas; mas veja a disc. sobre 22:2).

9:31 / Lucas encerra esta seção (e, num sentido mais amplo, encerra toda a narrativa iniciada com a história de Estevão), com uma declaração breve a respeito do estado da igreja (veja a disc. sobre 2:43-47). Agora elas tinham paz. Isto estava diretamente relacionado com a conversão de Paulo, mas havia outros fatores não mencionados por Lucas.

Agora o Sinédrio tinha de enfrentar questões bem mais sérias. Primei­ro, havia ocorrido mudança de sumo sacerdote. Caifás havia sido deposto em 57 d.C, e em seu lugar Vitélio tinha instalado de início a Jônatas (veja a disc. sobre 4:6), e depois o próprio irmão deste, Teófilo (37-41 d.C). Segundo, havia ocorrido mudança de imperador naquele mesmo ano; Calígula era agora o sucessor de Tibério. O novo imperador era muito menos simpático aos judeus do que Tibério havia sido (veja B. Reicke, p. 193), fato que logo se tornou evidente. No verão de 38 d.C, Herodes Agripa I, a caminho do reino que lhe fora concedido por Calígula (veja a disc. sobre 12:1), promoveu uma parada em Alexandria que incitou tumultos entre os judeus e os gregos dessa cidade. Tais rebeliões de fundo racial espalharam-se por outras cidades. Os gregos de Jâmnia levantaram um altar ao imperador, mas os judeus o derrubaram. Calígula interveio, ordenando que sua imagem fosse introduzida no templo (39 d.C; veja Josefo, Antigüidades 18.261-268). Tal profanação só não ocorreu graças aos rogos de Herodes Agripa, mas enquanto Calígula reinou a ameaça ficou pairando sobre a cabeça dos judeus. Calígula foi assassinado em 41 d.C.

Enquanto isso, as igrejas "cresciam" (as igrejas... eram... edificadas, v. 31). Este verbo em geral refere-se ao crescimento espiritual, mas pode incluir o desenvolvimento de uma estrutura organizacional na igreja (veja a disc. sobre 11:30). Ao mesmo tempo, elas cresciam em número (se multiplicavam) por causa de dois fatores: o temor do Senhor [Jesus] e o fortalecimento pelo Espírito Santo. A palavra "edificadas" em ECA é, no grego, o substantivo paraklesis, que pode significar várias coisas: "invocação", "consolação", ou "exortação". É provável que aqui ela tenha este último significado, no sentido que a pregação da igreja (a exortação) tornava-se eficaz mediante o Espírito Santo. Deve-se notar que a palavra igreja está no singular (ECA preferiu o plural), embora se refira a várias igrejas, ou várias comunidades cristãs. Há apenas um "corpo" de Cristo, não importando quão longe estejam as igrejas locais, ou quão diferentes sejam. Aqui, pela primeira vez em Atos, temos uma referência à presença de cristãos na Galiléia. Eles não foram menciona­dos antes, em parte por causa do esquema de Lucas. Seja como for, "a Galiléia não exerceu um papel importante no desenvolvimento posterior do cristianismo primitivo" (Hengel, Acts, p. 76).

 

Notas Adicionais # 23

9:25 / Os discípulos, lit. "seus discípulos" (NIV traz "seus seguidores"). Se aceitarmos essa expressão pelo que parece significar, seriam talvez judeus convertidos por Paulo, ou judeus cristãos atraídos pelo seu ensino (evidência de seu grande poder de liderança? ). Entretanto, o pronome possessivo "seus" tem sido questionado por vários eruditos, não em bases textuais (isto ficou bem comprovado), mas pelo fato de nos vv. 19 e 25 a palavra "discípulos" ser empregada de modo absoluto. Afirma Alford que esse pronome representa um emprego inusitado do genitivo como objeto direto (não expresso) do verbo tomaram, redundando (como em ECA) em: "os discípulos o tomaram" (vol. 2, pp. 104s.). B. M. Metzger sugere que o acusativo normal (objeto direto) sofreu corruptela dando o genitivo nos manuscritos primitivos (A Textual Commentary on the GreekNew Testament, p. 366).

9:31 / Judéia, Galiléia e Samaria: Tem-se dito que este versículo trai e expõe a ignorância de Lucas da geografia da Terra Santa, pois parece que ele pensa que a Galiléia e a Judéia têm limites comuns. Atos 15:3 é a resposta adequada de Lucas a essa crítica.