Os viajantes retomam seu caminho, e a narrativa continua a mostrar detalhes, como antes (veja a disc. sobre 20:7-12). A parte mais extraordinária desta história é a reiterada advertência de perigo feita a Paulo.
21:1 / As palavras de abertura deste capítulo recriam a cena final do último capítulo; os viajantes têm que "rasgar-se uns dos outros" ao separar-se de seus amigos (é o mesmo verbo empregado em 20:30). De Mileto navegaram direto para Cós, no sul (cerca de 64 quilômetros). É provável que se tenha em mente a cidade na ilha do mesmo nome. Ali passaram a noite. Cós, além de ser famosa pela sua escola de medicina, era também um centro de vida judaica no mar Egeu (veja 1 Macabeus 15:23; Josefo, Antigüidades 14.110-118; Guerras 1.422-425). É bastante improvável, contudo, que Paulo houvesse feito algum contato com os judeus. No dia seguinte eles rodearam a península de Cnido e chegaram a Rodes. De novo é possível que se tenha em mente a cidade na ilha do mesmo nome, e novamente (de modo contrário à tradição) é improvável que Paulo tenha pregado nessa ilha. De acordo com os melhores textos, os viajantes encerraram esta parte de seu trajeto em Patara, na costa Lícia (veja a disc. sobre 13:13s.). O texto ocidental, talvez por influência de 27:5, acrescenta "e Mira", fazendo que nessa cidade, a cerca de oitenta quilômetros para o leste, fosse o lugar portuário onde os viajantes fizeram baldeação para um navio maior, para a navegação até à Síria. Entretanto, há razões para presumirmos que os ventos reinantes faziam que Patara fosse o melhor lugar de embarque para a viagem ao leste, sendo Mira o ponto terminal a oeste. Ficamos, pois, com o texto aceito. Patara seria para a cidade de Xanto o que os Pi réus eram para Atenas.
21:2-3 / Aqui eles encontraram um navio que ia para a Fenícia (v.
2), uma viagem de cerca de seiscentos e quarenta quilômetros, por um circuito que os levaria de Chipre a Tiro, a principal cidade da Fenícia, onde o navio se descarregaria. Pelo tempo que a descarga tomou, parece que se tratava de um navio grande (cp. v. 4). O principal porto de Tiro ficava no lado sul da "ilha" em que a cidade havia sido edificada. Agora, todavia, a ilha estava ligada ao continente mediante um istmo artificial (construído por Alexandre o Grande) e pelo subseqüente acúmulo de areia de ambos os lados do estreito. No v. 5 Lucas menciona uma dessas praias arenosas. Diminuíra um pouco a antiga glória de Tiro, mas esta havia permanecido importante centro comercial e industrial. Em honra a sua grandeza do passado os romanos a haviam declarado cidade livre dentro da província da Síria.
21:4 / Paulo usou o tempo durante o qual o navio era descarregado para encontrar-se com os discípulos. É possível que sua estada em Tiro tenha incluído um culto, como em Trôade, com celebração da santa ceia (cp. 20:7-12). Não devemos tomar a aparente falta de pressa de Paulo como significando que ele perdera a esperança de chegar a Jerusalém a tempo para celebrar o Pentecoste (cp. 20:16; também 21:15). A urgência demonstrada anteriormente talvez fosse decorrência das contingências das viagens marítimas daqueles dias (cp. 2 Coríntios 11:25), mas havendo atravessado o mar com segurança até Tiro, quem sabe Paulo achou que tinha algum tempo sobrando. Teria visitado esta igreja antes (cp. 11:30; 12:25; 15:3), e o emprego do artigo definido em grego, "os discípulos", dá apoio a este pensamento — esses cristãos que Paulo sabia estarem lá. A presença deles tem raízes nos eventos de 11:19. Estando Paulo entre eles, chegou uma advertência (talvez mediante um profeta cristão) pela qual o apóstolo não deveria ir a Jerusalém. Todavia, Paulo tinha toda certeza de que deveria ir, e nada o impediria (cp. 19:21; 20:22). Talvez este tenha sido um incidente semelhante ao de alguns dias depois, em Cesaréia, pelo qual o Espírito fez saber que o futuro de Paulo estava inçado de perigos. Outros viram nessa premonição razões suficientes para exortar a Paulo a que regressasse, mas parece que para o apóstolo aquilo era o meio de Deus prepará-lo para o que o aguardava logo adiante.
21:5-6 / Quando o navio estava pronto para partir (o artigo definido indica que se tratava do mesmo navio de antes), a igreja toda acompanhou a Paulo e aos demais à praia (veja a disc. sobre 15:3), onde se ajoelharam em oração antes da partida (cp. 20:36; veja a disc. sobre 7:60 e 9:10). Aparentemente não se tratava de uma igreja grande.
21:7 / Segundo a RSV e ECA, os viajantes deixaram o navio em Ptolemaida, cerca de quarenta e oito quilômetros ao sul de Tiro. A GNB e NIV implicam que eles prosseguiram viagem até Cesaréia. A dificuldade está no verbo grego, que dá apoio a esta ou àquela interpretação, embora num contexto náutico tal verbo sempre dê a idéia de continuação de uma viagem, em vez de seu término. Além do mais, faz mais sentido que os viajantes estivessem dispostos a esperar em Tiro uma semana, a fim de poder ir de navio o mais longe possível, do que se desejassem esperar tanto tempo para poupar-se uma caminhada de apenas quarenta e oito quilômetros, quando ainda havia mais sessenta e quatro quilômetros de distância entre Ptolemaida e Cesaréia. Ptolemaida era a antiga Accho, nome que a cidade readquiriu após o período romano (Acre dos cruzados). Ela recebeu seu nome como consta no Novo Testamento nos fins do terceiro século ou começo do segundo século a.C, quando a Palestina foi governada pelos Ptolomeus do Egito. Nos dias de Paulo era apenas uma colônia. Entretanto, havia ali uma comunidade judaica, e uma igreja cristã que talvez datasse da mesma época da igreja de Tiro (11:19). Sem dúvida alguma Paulo havia visitado esses crentes antes, visto que Ptolemaida ficava à beira de uma estrada pela qual ele havia viajado várias vezes antes (11:30; 12:25: 15:3). Agora ele passaria um dia inteiro com aqueles irmãos.
21:8-9 /No dia seguinte eles partiram para Cesaréia. Em duas ocasiões antes, pelo menos (9:30; 18:22), e talvez mais, Paulo havia passado por Cesaréia. É quase certo que ele conhecia Filipe, e nessa ocasião ficou com ele durante uns dias. A última vez que ouvimos falar de Filipe foi em 8:40; ele havia chegado à Cesaréia fazia uns vinte anos. Parece que instalara seu lar ali desde aquele tempo (veja o Didache 13 a respeito do "estabelecimento" de um missionário itinerante). Seu título, o evangelista, ter-lhe-ia sido dado para diferençá-lo de Filipe, o apóstolo (embora persistisse a confusão entre ambos; veja Eusébio, Ecclesiastical History 3.31.3 e 5.17.3). Todavia, não se trata de um título vazio. Esse Filipe poderia ter sido chamado de "um dos sete" (veja a disc. sobre 6:3ss.), mas ele adquirira o direito de ser chamado por esse nome (8:4-40). Agora ele era pai de quatro filhas solteiras que profetizavam (v. 9; veja a disc. sobre 11:27), cuja presença e trabalho dedicado à igreja não passaram despercebidos (caracteristicamente) por Lucas (veja a disc. sobre 1:14). Embora fossem profetizas, não fizeram predição a respeito de Paulo pelo que sabemos. Esse papel coube a outrem.
21:10-11 / Os viajantes estavam em Cesaréia há alguns dias quando um profeta chamado Ágabo chegou da Judéia (v. 10). Politicamente, a Cesaréia fazia parte da Judéia. Na verdade, Cesaréia era a capital administrativa da Judéia. Sendo, porém, uma cidade predominantemente gentílica, muitos judeus não a consideravam parte de sua terra; a referência de Lucas reflete essa atitude (veja a nota sobre 1:8 e a disc. sobre 10:1). É evidente que Ágabo é o mesmo homem de 11:28, embora Lucas o apresente aqui como que pela primeira vez. Isto talvez tenha acontecido porque Lucas consultava seu diário de viagem, e à época desse registro ainda não havia ouvido falar de Ágabo. Esse profeta repetiu as advertências anteriores sobre os perigos que cercavam Paulo (20:23; 21:4), utilizando um ato simbólico reminiscente dos profetas de antigamente (cp., p.e., 1 Reis 11:29-39). Tomou o cinto de Paulo e, ligando os seus próprios pés e mãos, disse que o dono daquele cinto seria tratado daquela forma pelos judeus, que o entregariam amarrado aos gentios (v. 11). Estas palavras não são muito diferentes das predições de Jesus a seu próprio respeito (Lucas 9:44; 18:32; 24:7; cp. as predições do Senhor a respeito de Pedro, João 21:18), tendo sido talvez deliberadamente escolhidas (por Lucas? ) a fim de demonstrar alguma semelhança entre Jesus e Paulo (veja a disc. sobre 19:21-41). Na verdade, porém, os judeus não entregaram Paulo, conforme a previsão, mas foram obrigados a libertá-lo quando os romanos intervieram. Entretanto, não há a mínima dúvida de que os judeus foram realmente os responsáveis pelo encarceramento de Paulo pelos romanos, de modo que se cumpriu a intenção da profecia, mas não em minúcias (cp. 28:17). A fórmula introdutória de Ágabo, Isto diz o Espírito Santo, corresponde à expressão "assim diz o Senhor" do Antigo Testamento.
21:12-13 / Quando os amigos de Paulo ouviram isto, dirigiram-se a ele: rogamos-lhe, tanto nós como os que eram daquele lugar, que não subisse a Jerusalém, mas Paulo não quis ouvir-lhes os rogos (v. 12; cp. v. 4). A tristeza deles causava tristeza em Paulo, embora talvez devamos tomar a expressão magoando-me o coração (v. 13) como que significando "magoando-me o espírito", a saber, "enfraquecendo minha resolução", visto estar ele determinado a ir a Jerusalém. O grego é enfático: "Eu estou pronto" ("Eu, de minha parte, estou pronto", NIV, cp. Lucas 9:51). Veja a nota sobre 2:38 quanto a pelo nome do Senhor Jesus.
21:14 / À face de tal determinação, os circunstantes só podiam aceitar a decisão de Paulo, e deixar a questão nas mãos de Deus. Nesse contexto, Faça-se a vontade do Senhor parece ecoar a oração de Jesus no Getsêmani (Lucas 22:42; cp. 18:21).
21:15-16 / Por fim, havendo feito os nossos preparativos, subimos a Jerusalém (v. 15). É possível que tais preparativos incluíssem o aluguel e apetrechos de cavalos de montaria (o texto grego permite esse significado), visto que ainda tinham pela frente uns cem quilômetros de estrada. Se aceitarmos o texto ocidental, não há dúvidas de que eles partiram a cavalo, visto que o texto os faz completar a viagem em dois dias. Alguns crentes de Cesaréia os acompanharam à casa de Mnasom (v. 16; veja a disc. sobre 9:6ss. e 15:3). Este cipriota possuía um nome comum entre os gregos, embora não possamos duvidar de que ele fosse um judeu, visto que é descrito como discípulo antigo (v. 16) — frase que quase tem o sentido de "membro fundador" — o que pode indicar que sua conversão teria ocorrido no dia de Pentecoste, no cap. 2. Pedro usa a mesma expressão em 11:5 com referência àquele evento (cp. também 15:7). Mnasom aparentemente era homem de recursos, tendo uma casa em Jerusalém suficientemente grande para acomodar visitantes — uma consideração importante se esta fosse na verdade a época do Pentecoste (veja a disc. sobre 2:1). Entretanto, temos a possibilidade de a casa dele não ser em Jerusalém (segundo o texto ocidental), mas num vilarejo, a meio caminho, onde os viajantes pernoitaram. Todavia, será que Lucas teria o trabalho de mencionar-lhe o nome se o grupo se hospedou em sua casa apenas uma noite? Seja como for, o caso é que Paulo e seus companheiros finalmente chegaram a seu destino.
21:5 / Havendo passado ali aqueles dias: isto é, "completado nosso tempo ali", um verbo bastante incomum nesse contexto. É empregado noutras passagens a respeito de terminar-se um edifício ou uma obra. Pode sugerir que o navio cumpria um horário rigoroso, de modo que os viajantes dispunham de um número exato de dias, que não se podia exceder. Quando esses dias se completaram, todos voltaram ao navio.
21:8 / O evangelista: É palavra que ocorre apenas duas vezes noutras passagens do Novo Testamento (Efésios 4:11; 2 Timóteo 4:5). Ser evangelista era considerado um dom distinto, de tal modo que embora todos os cristãos sejam chamados para exercer esse ministério, alguns recebem um dom especial para exercê-lo — fato que ocorre até os dias atuais. Na segunda das duas passagens mencionadas, Timóteo é exortado a fazer a obra de um evangelista, isto é, tornar conhecidos os fatos relacionados ao evangelho. Tal exortação lhe chegou quando já exercia o trabalho local e pastoral, em grande parte. De modo semelhante, Filipe foi chamado de "evangelista" quando estabelecido num determinado lugar. É possível, então, que esta fosse a diferença (ou uma das diferenças) entre um evangelista e um apóstolo. Aquele era itinerante, este quase não viajava.