Assim foi que Lucas selecionou, dispôs e interpretou os eventos de sua narrativa com o objetivo de explicar um tema, de modo que tudo que não estivesse ligado a esse tema era impiedosamente omitido. Nada lemos, p.e., a respeito dafundação de comunidades cristãs no Egito, na Cirenaica, no norte e no leste da Ásia Menor, na Armênia, no leste da Síria e no reino parto, ou Itália. Essas omissões mostram-se tão vastas (Hengel fala do "ecletismo quase objetável"de Lucas, na escolha de seu material) (14) que alguns eruditos inclinam-se aver Atos mais como uma espécie de monografia histórica do que como umtomo da história da igreja, reservando o título de "Pai da História da Igreja" para Eusébio (morto cerca de 339 d.C).Lucas estava interessado em apenas um tema da história da igreja, a saber, o modo como a igreja rumou de Jerusalém a Roma e como, ao mesmo tempo partiu da missão aos judeus indo à pregação da mensagem divina aos gentios (veja mais ainda na disc. de "Título e Propósito"). Ainda assim Lucas deixou muita coisa de lado, por não lhe servir os propósitos. Todavia, Lucas não deve ser julgado pelas suas omissões. Ele deve ser julgado apenas dentro dos limites que ele próprio se impôs; e dentro desses limites o autor saiu-se admiravelmente bem. É claro que há áreas problemáticas (veja, p.e., a introdução de 15:1-21). Tampouco Lucas é um escritor impecável. "Ele abrevia demais alguns eventos, de tal modo que estes se tornam quase incompreensíveis; quanto a outros, apenas dá indícios. Ao mesmo tempo, elabora aquilo que deseja enfatizar, e emprega repetição múltipla como estilo de redação. Lucas também consegue combinar tradições históricas separadas de modo que sirvam a seus objetivos, e
consegue separar assuntos interligados se, como resultado, puder obter uma seqüência significativa de acontecimentos"(15). Por essas razões, Lucas não seria considerado um grande historiador segundo os padrões modernos. Entretanto, ele foi um escritor competente que obteve
grandesucesso em conceder-nos um relato vigoroso, interessante e exato de tudoque decidiu relatar-nos sobre a historiada igreja. No entanto, para alguns leitores há uma objeção insuperável paraaceitarem Lucas como historiador digno de confiança, a saber, o fato de elemencionar milagres. Seu interesse pelo milagroso — e não há como negar que Lucas se interessava — destrói toda credibilidade que de outra forma eleteria, assim afirmam os críticos. Todavia, tal crítica só teria valor se osmilagres não houvessem ocorrido. As evidências indicam que houve milagres.Paulo apelou aos gaiatas, como se referisse a algo acima de qualquer dúvida:"Aquele que vos dá o Espírito, e que opera milagres entre vós, fá-lo pelasobras da lei, ou pela pregação da fé? " (Gálatas 3:5). E também em Romanos15:18-19, sem nenhum temor nem pensamento de contradição, Paulo declara que Deus realiza milagres. Tampouco é verdade o que se tem dito, que Lucas aceitou o milagroso sem qualquer crítica, mas com bastanteingenuidade. Não há milagres em Atos, só por amor aos milagres. Dunn nos faz lembrar de que "em Atos 8:18ss. Simão 0 mago é denunciado por considerar o Espírito como uma espécie de poder mágico cujos segredos, ou técnicas, alguém poderia comprar; em 13:8-11 o cristianismo é apresentado em contraste violento com a magia; cm 14:8-18, Lucas resiste fortemente contra a tentação (e rejeita-a) de retratar Paulo e Barnabé como "deuses semelhantes aos homens"; em 19:13-16 ele sublinha o fato de que o nome deJesus não consiste de mera fórmula exorcista capaz de ser utilizada por qualquer pessoa que a aprender, mas só deve ser empregada pelos discípulos que clamam pelo seu nome (cp. 2:21; 9:14, 21; 15:17; 22:16)
(16).
Diz Dunn que a acusação de ingenuidade tem sido atirada indevidamente contra Lucas. "A atitude despojada de criticismo diante do poder miraculoso pode ser apenas uma reflexão fiel da atitude isenta de discriminação por parte da missão cristã primitiva. Ele poderia estar emgrande parte satisfeito em reproduzir as histórias que lhe eram passadas, semcomentá-las". E é assim que Dunn conclui: "É difícil dizer onde terminamas tradições e começam as atitudes do próprio Lucas... É possível que omodo mais justo de avaliar o tratamento que Lucas dispensou a seu trabalho,nesta altura, é reconhecê-lo como alguém que, olhando-se para trás, de uma posição de relativa calma nos anos posteriores, esteve apaixonado e emocionado diante do entusiasmo e poder da missão primitiva, ao ouvir testemunhas ou relatórios mais antigos mencionarem a obra. Se assim foi, é bem provável que Lucas tenha redigido seu relato dos começos do cristianismo tendo como objetivo transmitir algo que causasse o mesmoimpacto e impressão fortes em seus leitores. Muitos deles, tanto do passado como do presente, dariam testemunho do sucesso de Lucas nesse sentido