Criar um Site Grátis Fantástico
Atos 4:1 -22
Atos 4:1 -22

Atos 4:1 -22: Pedro e João Diante do Sinédrio

 

4:1 / Parece que João, como também Pedro, falavam à multidão — o grego diz simplesmente: "estando eles falando" — quando as autorida­des intervieram. Mas haviam falado o suficiente para uma apresentação eficaz do evangelho (cp. v. 4). O capitão do templo, isto é, "o coman­dante da guarda" (cp. 5:24, 26; RSV Neemias 11:11; Jeremias 20:1; 2 Macabeus 3:3; Josefo, Antigüidades 20.125-133; Guerras 6.288-309), não só era sacerdote, como ocupava o segundo posto na hierarquia, logo abaixo do sumo sacerdote. Cabia-lhe a supervisão geral do culto e do pessoal que trabalhava no templo. Outros oficiais estavam sob seu comando (cp. Lucas 22:4, 52), cada um dos quais chefiava um pelotão de polícia do templo, com a responsabilidade de patrulhar a área do templo, e guardar suas portas e a tesouraria. Ao lado do capitão do templo vieram os sacerdotes, talvez os que estavam de plantão durante o sacrifício vespertino, cujo trabalho poderia ter sido perturbado pela multidão que se havia reunido ao redor dos apóstolos, e alguns saduceus, representantes da hierarquia do templo, talvez não menos irados em face da perturbação dos sacerdotes, mas irados por outras razões também. O verbo empregado para descrever a chegada inesperada deles — "sobrevieram" — ao lugar onde estavam os apóstolos, é usado geralmente para indicar uma chegada repentina e, às vezes, para significar uma chegada abrupta com intenções hostis (gr. ephistanai). É possível que ambos os sentidos se apliquem a este caso.

Os saduceus constituíam uma das várias seitas em que se dividia o judaísmo daqueles dias. Eram pouco numerosos. Na maior parte, os saduceus eram constituídos das famílias dos sumos sacerdotes (veja a disc. sobre v. 6) e dos "anciãos", chefes de famílias antigas cuja tradição de liderança se perdia na longa história israelita. Os saduceus repre­sentavam uma aristocracia aparentemente arrogante e exclusivista. Seu poder estava em declínio, mas enquanto o cargo de sumo sacerdote estivesse em suas mãos (isto acontecia durante aquele período) e com este cargo a administração do templo, os saduceus constituíam uma força que precisava ser considerada. A seita dos saduceus desapareceu após a destruição do templo em 70 d.C. Na política, eram conservadores pragmáticos. Achavam muito útil manter boas relações com os romanos. Por isso, quando Jesus lhes pareceu uma figura revolucionária, cuja movi­mentação atrairia represálias por parte de Roma, a hostilidade dos saduceus ferveu contra o Senhor (João 11:48). O ódio deles contra Jesus inflamou-se mais ainda quando o Senhor interferiu no templo (Lucas 19:45-48), de tal maneira que, no fim, foram os saduceus que o levaram à morte. E quando o movimento de Jesus sobreviveu sua própria morte, foram os saduceus que permaneceram seus mais persistentes adversários (veja a disc. sobre 23:9); a faceta política ainda era a mais importante — os saduceus não queriam perturbar o "status quo".

4:2-3 / Embora este possa ter sido o principal fator da oposição dos saduceus aos seguidores de Jesus, não foi o único. Essa inimizade também derivava do conservadorismo religioso deles. Diferentemente dos fariseus, que atribuíam grande peso à "lei oral" — o enorme corpo de tradição e interpretação que se avolumara ao redor das Escrituras — os saduceus acreditavam que só a lei escrita tinha validade permanente e, ainda assim, o interesse deles confinava-se aos preceitos relacionados ao culto e ao sacerdócio. Ao aplicar a lei, aderiam de modo muito estrito à interpretação literal e, com base nessa premissa, repudiavam muitas das doutrinas a que os fariseus estavam apegados, inclusive a expectativa da grande ressurreição dos mortos (cp. 23:8; Lucas 20:27; Josefo, Anti­güidades 18.16-17). Todavia, as diferenças entre os saduceus e os fariseus eram mais profundas do que meras questões de interpretação legal. Os saduceus estavam empenhados numa verdadeira guerra de classe, e seu objetivo final era obter o direito de ensinar e interpretar as Escrituras. Os escribas farisaicos em sua maioria não eram sacerdotes, e lutavam no sentido de obter o que sempre fora uma prerrogativa sacerdotal, enquanto os saduceus, de sua parte, viam-se como os guardiões deste antigo direito. Portanto, era vexatório para os saduceus encontrar os seguidores de Jesus — "sem letras eindoutos"(v. 13) — reivindicando também o direito de interpretar as Escrituras, fazendo-o no próprio templo, e dando apoio a uma doutrina que a hierarquia sacerdotal repudiava. É que Pedro e João estavam ensinando em Jesus a ressur­reição dentre os mortos.

A semelhança dos fariseus, os cristãos aguardavam a ressurreição geral (dos bons; veja a disc. sobre 24:15), mas diferentemente deles, os cristãos fundamentavam suas expectativas "em Jesus", visto que a ressurreição do Senhor foi o penhor ou garantia de que os crentes também haveriam de ressurgir (cp. 1 Coríntios 15:21 s.). Este ensino em particular não se encontra no sermão de 3:12-26, embora não precisemos duvidar de que, por causa desse penhor, o ensino estava embutido no que os apóstolos disseram. A intenção de Lucas foi apenas prover-nos o cerne do sermão, a saber, a messianidade de Jesus. Seja como for, havia ficado bem claro para os saduceus que a doutrina da ressurreição geral estava sendo ensinada com base na ressurreição (alegada, diriam eles) de Jesus, e decidiram determinadamente podar essa doutrina pela raiz. Sob pre­texto de quebra da paz fizeram que os apóstolos fossem presos, e porque era já tarde (v. 3) mantiveram-nos presos para o julgamento no dia seguinte. Não ficou claro se o mendigo também foi preso, embora com certeza estivesse presente no tribunal quando o caso foi discutido.

4:4 / Dois resultados surgiram após a pregação dos apóstolos: infla­mou-se a hostilidade das autoridades e muitos... dos que ouviram a palavra, creram. Lucas acrescenta a isto um comentário: e chegou (lit., "tornou-se") o número desses a quase cinco mil. Ao afirmar tal fato, Lucas emprega uma palavra que em geral denota "homens" (Lucas diz: "desses"), fazendo distinção de "mulheres", sendo presumível que ele se referia a homens apenas. Entretanto, também é provável que Lucas não estivesse querendo dizer que nesse dia foram acrescentados cinco mil homens, mas que os convertidos nesse dia especial, entre os quais poderia haver mulheres, elevaram o número total de homens, entre os crentes, para cerca de cinco mil. Novamente estamos diante de uma cifra não exata (cp. 1:15; 2:41).

4:5 / Pode-se avaliar um pouco as forças reunidas contra os discípulos mediante a consideração deste versículo e do seguinte. As três ordens aqui mencionadas aparentemente são as do Sinédrio. Sob os romanos, este supremo concilio dos judeus possuía considerável independência de jurisdição, tanto civil quanto criminal. Podia ordenar a prisão de uma pessoa, através de seus oficiais, como ocorreu no presente caso (cp. 9:1 s.; Mateus 26:47), e tinha poderes para julgar casos que não envolvessem a pena capital. As sentenças de pena capital exigiam a confirmação do procurador romano (cp. João 18:31), a qual em geral era concedida. Compunha-se o Sinédrio, primeiramente, dos principais sacerdotes, os quais talvez sejam indicados aqui pelas palavras seus maiorais (cp. v. 23), inclusive o sumo sacerdote em exercício, mais os que haviam ocupado o posto, e outros membros das famílias às quais pertenciam; em segundo lugar, os anciãos, os chefes de famílias e de tribos (veja a disc. acerca do v. 1); e em terceiro lugar, os escribas, que eram os "mestres da lei", ou peritos em leis, advogados, (cp. 23:6; Josefo, Guerras 2.411-416; Vida 189-198; Contra Apião 2.184-187). O Sinédrio contava setenta e um membros no total, incluindo o sumo sacerdote presidente, havendo representações dos saduceus e dos fariseus, estes entre os escribas, aqueles pelos sacerdotes e anciãos. Os saduceus compunham a maioria, mas às vezes eram obrigados a ceder à opinião dos fariseus por medo do povo (Josefo, Antigüidades 18.16-17; cp. Atos 5:34ss.), visto que os fariseus, a despeito de seu exclusivismo, eram espantosamente populares (veja Jeremias, Jerusalém, p. 266).

Se este versículo não descreve uma reunião plena do Sinédrio (isto teria sido difícil quanto à convocação por causa da exigüidade de tempo), fica pelo menos implícito que um corpo representativo de membros desse concilio reuniu-se no dia seguinte em Jerusalém. Esta cidade era sempre o lugar de suas reuniões, mas Lucas talvez acrescentasse esta minúcia para benefício de seus leitores gentios. Mas em que lugar da cidade eles se reuniam? De acordo com Josefo, a sede do concilio ficava na extre­midade oriental da primeira muralha, isto é, a mais antiga, a oeste da área do templo, entre este e o Xisto, uma grande área pavimentada que se estendia para o oeste (Veja Guerras 5.142-155). Todavia, o Misna afirma que o concilio reunia-se numa sala dentro do próprio templo, conhecida como Gazith, "a câmara de pedras lavradas" (m. Middoth 5.4). Josefo é a autoridade maior, embora a Misna possa ter razão em chamar aquela sala de Gazith, talvez como referência ao Xisto.

4:6 / Esta reunião em particular contou com a presença de Anás, o sumo sacerdote, que havia ocupado esse cargo nos anos 6-14 d.C, tendo sido afastado pelo procurador romano. À semelhança de outros sumos sacerdotes "aposentados", Anás detinha não só o título mas também muitos dos direitos e obrigações desse cargo. A dificuldade é que o título só é atribuído a Anás, o que sugere que ele teria sido considerado presidente do Sinédrio, embora em geral o sumo sacerdote em exercício é quem o presidisse (cp. 5:17; 7:1; 9:1; 22:5; 23:2, 4; 24:1). Todavia, como chefe da linhagem do sumo sacerdote, é possível que Anás houvesse sido conservado na presidência, ainda que houvesse perdido o cargo de sumo sacerdote. Caifás, o atual sumo sacerdote, era seu genro. O João deste versículo pode ter sido "Jônatas" (nome que aparece no texto Ocidental), ou seja, um dos cinco filhos de Anás, o qual sucedeu a Caifás em 36 d.C; Alexandre é desconhecido para nós. Estavam pre­sentes também todos os que eram da linhagem do sumo sacerdote. Esta referência pode indicar a família de Anás, ou mais genericamente todos quantos pertenciam ao pequeno grupo de famílias dentre as quais o sumo sacerdote era escolhido. Dentre esses homens estavam os que ocupavam cargo permanente na administração do templo, incluindo "o capitão do templo" (v. 1), o supervisor do templo e os tesoureiros (veja Jeremias, Jerusalém, p. 179). Fica evidente, pois, que não importando quem mais estivesse presente, os saduceus estavam em pé de guerra. Só se podia esperar isso deles. Trata-se do litígio deles contra os apóstolos. O apóstolo João, que era conhecido do sumo sacerdote (João 18:15), mais tarde seria capaz de fornecer os nomes a uma igreja que se havia interessado pelo assunto.

4:7-10 / De acordo com a Misna, o Sinédrio se reunia numa disposição semicircular, de tal modo que seus membros podiam ver-se uns aos outros (m. Sanhedrin [Sinédrio], 4.3). Pode ser que tal disposição se reflita nesta passagem, em que lemos que eles obrigaram Pedro e João a ficarem no meio ("pondo a Pedro e João no meio", diz o grego), embora essa expressão possa ser empregada num sentido mais genérico, como "ficar em frente de" (cp. 14:6; Marcos 3:3; João 8:3). Durante o interro­gatório os conciliares ficavam sentados (cp. 6:15; 23:3), enquanto o réu, as testemunhas e os que estivessem falando permaneciam de pé (cp. 5:27, 34; 6:13; 23:9; Marcos 14:57, 60). Para a maioria dos prisioneiros, ficar diante do Sinédrio era uma experiência horrorosa (veja Josefo, Antigüi­dades 14.168-176), não, porém, para estes dois, aparentemente. Não é fácil apanhar nuances da fala num relato escrito, mas no versículo 9, p.e., nas palavras de Pedro: Visto que hoje somos interrogados acerca do benefício feito a um homem enfermo parece que percebemos matizes da indignação, talvez do sarcasmo, mas com toda certeza não percebe­mos aí um homem assombrado pela tremenda dignidade do concilio. Lucas atribui esta confiança (de modo explícito a de Pedro e por impli­cação a de João) ao fato de estarem ambos cheios do Espírito Santo. Haviam-se tornado "pessoas diferentes" (cp. 1 Samuel 10:6). Afirmar que estavam "cheios" não traz à baila a questão da permanência do dom do Espírito no Pentecoste. O Espírito permanece no povo de Deus, como Lucas o entendia muito bem. Entretanto, há momentos em que os crentes estão mais conscientes da presença do Espírito (cp. 2:4; 4:31; 13:9; Lucas 12:1 ls.; 21:14s.), e o momento presente foi um desses, quando os apóstolos se prepararam para responder segundo a esperança que tinham no coração (cp. 1 Pedro 3:15). É estranho que não se lhes tenham feito perguntas sobre a pregação referente à ressurreição, pela qual haviam sido presos, mas a respeito da cura que a antecedera (veja ainda a disc. sobre v. 14). É claro que ambos os fatos estavam ligados entre si, de modo que, por um lado, poder-se-ia dizer que o Sinédrio estava começando pelo princípio. Por outro lado, os conciliares talvez não quisessem discutir a ressurreição de Jesus, por terem descoberto que não consegui­riam desmentir esse fato.

O vocativo de Pedro: Autoridades do povo, e vós, anciãos de Israel (v. 8) novamente sugere que os apóstolos tinham de enfrentar de modo especial os saduceus (veja a disc. sobre v. 5). Pedro inicia sua defesa salientando que haviam feito um benefício a um homem enfermo (v. 9). Certamente tal beneficência não constituiria motivo de queixa. Várias vezes nestes versículos há menção desse mendigo coxo, quer pelo pronome pessoal, quer pelo demonstrativo "este"; seria como se Pedro falasse e ao mesmo tempo apontasse para o homem. Por trás da frase como foi curado está a mesma palavra grega usada no v. 12 com o sentido mais amplo de "salvar". A linha que divide a rigidez física da espiritual é sempre muito tênue no pensamento bíblico (cp. Marcos 10:52; Lucas 7:50). Quanto à fonte da cura, foi em nome de Jesus Cristo, o nazareno (veja a nota sobre 2:38). Este Jesus, estes mesmos membros do concilio, (vós) o enviastes à morte, (crucificastes), mas Deus o ressuscitou dentre os mortos (v. 10).

4:11 / O sermão já havia salientado outra declaração da messianidade de Jesus — ele é o Cristo (v. 10) — tema que Pedro sustentou ao citar o Salmo 118:22. Originalmente, a pedra representava Israel ou o rei de Israel; os edificadores que rejeitaram a pedra seriam os pagãos, que edificam os impérios deste mundo. Ou talvez o termo "os edificadores" fosse empregado de início para as pessoas de Israel que desprezavam os começos pequeninos, modestos, de um novo tempo. Seja como for, a referência veio a ser entendida como pertinente ao Messias, talvez pelos judeus (cp. Lucas 19:38 para o Salmo 118:26, embora a literatura rabínica não nos ofereça um exemplo de interpretação messiânica para o v. 22), com certeza pelos cristãos, que viam na "pedra" uma referência a Jesus, e na referência aos "edificadores" uma acusação aos membros daquele concilio e seus comparsas (veja E.E. Ellis, pp. 205ss.). Entre várias mudanças introduzidas no texto citado, da LXX, a adição de vós enfatiza a aplicação, enquanto a substituição de "desprezada" por outra palavra que significa simplesmente "rejeitar" (GNB; NIV traz "rejeitada", como ECA [gr. ho exouthenetheis; LXX exoudenosinj) sublinha a acusação. Descobriu-se que a pedra sobre a qual estes edificadores despejaram seu desprezo era cabeça de esquina, (trad. lit.) — talvez não fosse a pedra colocada no topo, como diz NIV, mas a fundamental, no alicerce, a que une duas paredes que se encontram em esquina, naquele ponto, de onde partem as linhas de esquadro (cp. Efésios 2:20).

4:12/0 uso cristão do Salmo 118:22 foi sugerido pelo próprio Jesus, que o mencionou em resposta à mesma pergunta que agora é colocada diante dos apóstolos (v. 7; cp. Lucas 20:1-18). No caso de Jesus, ele havia prosseguido, falando em termos de Isaías 8:14s. e Daniel 2:35, de uma pedra que destrói os que a rejeitam. Aqui, Pedro apresenta o outro lado da moeda, ao declarar que a pedra é a fonte da salvação. E digno de nota que em 1 Pedro 2:6s. ele menciona ambos os lados dessa verdade (cp. também Romanos 9:33; Efésios 2:20) e o elo de conexão em seu pensamento nessa carta, como talvez também aqui, entre os versículos 11 e 12, é Isaías 28:16, que parece ter sido interpretado como referindo-se ao Messias nas versões aramaicas do Antigo Testamento, ou targum. O apóstolo está pensando agora, não apenas no milagre do mendigo coxo que havia sido curado, mas no significado desse milagre de modo geral: a salvação da humanidade toda, para o que "o nome" é algo essencial, como havia sido no caso deste milagre (veja as notas sobre 2:38 quanto "ao nome"). Segundo o pensamento judaico, o Messias jamais fora essencial para o reino de Deus, do qual se podia falar que viria com ou sem o Messias, indiferentemente. Todavia, os cristãos haviam aprendido que o Messias era essencial e portanto indispensável. Há uma preposição que é usada duas vezes no texto grego neste versículo (gr. en, traduzida de forma variada por "através" e "por", porém mais caracteristicamente com o sentido de "em"). Essa preposição ("pelo" qual...) sugere que Cristo é tanto o agente, e, pode-se dizer, o local de nossa salvação; Cristo realizou nossa salvação, e nós só a encontramos nele (cp. João 14:6; 1Timóteo 2:5s.)- O emprego da palavra "devamos" (veja a disc. sobre 1:16), aliado à declaração de que Deus deu ao Senhor este nome ("dado entre os homens") nos faz lembrar de que esse é o caminho determinado para nossa salvação. Não há outro caminho, pois a mensagem cristã centraliza-se nesse anúncio da salvação (cp. 13:26, 47; 16:17).

4:13 / Novamente nos pareceria que João falasse simultaneamente com Pedro, e com a mesma confiança. A palavra traduzida por ousadia significa falar tudo, nada retendo. Trata-se de um dom pelo qual oraram ("ousadia", vv. 29, 31), e de uma característica da pregação apostólica (cp.9:27s.; 13:46; 14:3; 18:26; 19:8; 26:26; 28:31; também Efésios 6:20; 1 Tessalonicenses 2:2). Nesta ocasião os membros do concilio ficaram espantados diante da ousadia deles, de modo especial ao considerarem que eram homens sem letras e indoutos. É provável que suas roupas e seu modo de falar os houvessem denunciado. Isto não quer dizer que o concilio considerou Pedro e João como ignorantes completos, analfabe­tos (se se tomar o texto grego pelo que aparenta, ao pé da letra); o sentido é que lhes faltava o treino acadêmico formal dado aos escribas — eram simples leigos! A mesma queixa havia sido levantada contra Jesus (João 7:15), que também havia surpreendido seus ouvintes por sua ousadia de comportamento e de palavra. Na verdade, é possível que tenha sido a recordação da pessoa de Jesus que levasse o concilio a comentar: se maravilharam, e tinham conhecimento de que eles haviam estado com Jesus. Não devemos imaginar que o concilio só tenha descoberto agora que Pedro e João eram discípulos de Jesus. Com certeza, pelo menos isto eles sabiam a respeito dos apóstolos. Agora, todavia, refle­tia-se neles o quanto eram parecidos com Jesus. Quando Pilatos conde­nou a Jesus, aqueles homens julgaram que haviam ouvido falar desse homem pela última vez (haveria outra razão para condená-lo à morte? ). Entretanto, esses conciliares não haviam contado com o poder do Espírito (cp. Lucas 21:15), de modo que nesses homens cheios do Espírito, Jesus, em certo sentido, estava novamente diante deles. Por que jamais conse­guiam livrar-se dele?

4:14 / No que concernia à cura, havia duas hipóteses de culpa apenas, pelas quais Pedro e João poderiam ser punidos: a primeira seria que a cura não passasse de mistificação — mas o concilio nem sequer se atrevia a pensar nisso. A evidência da cura não admitia controvérsia, pois vendo com eles o homem que fora curado, nada tinham que dizer em contrário. Observe a palavra curado: o homem já não era mais aleijado. A segunda hipótese seria a cura ter sido realizada por meios ilícitos (cp. Deuteronômio 13:1-5; Marcos 3:20ss.). A pergunta inicial do concilio: "Com que poder ou em nome de quem fizestes isto? " (v. 7) sugere que os homens haviam investigado essa possibilidade. "O nome" neste caso poderia estar ligado a fórmulas mágicas, a poderes ocultos (veja a disc. sobre 19:13, e Marshall, p. 99). Todavia, logo de início Pedro havia atribuído o milagre ao "Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó" (3:13). Em última instância havia sido o poder de Deus que havia curado o homem, e nenhuma acusação poderia ser lançada contra quem fizesse tal afirma­ção.

4:15-18 / Talvez um tanto embaraçados, os membros do concilio esvaziaram a sala a fim de discutir o caso sigilosamente. A principal preocupação deles é que isto não se divulgue mais entre o povo (v. 17); dificilmente esta preocupação se referiria ao milagre, pois as notícias já estavam espalhadas pela cidade toda, mas ao ensino de Jesus, e à sua ressurreição. Visto que haviam condenado a Jesus, sua credibilidade estava em jogo. Entretanto, embora houvessem conseguido forjar umas acusações contra Jesus, era difícil inventar uma acusação mediante a qual pudessem condenar seus discípulos — especialmente agora que o mila­gre captara a imaginação do povo. O modo pelo qual formulam sua pergunta, no grego, Que havemos de fazer a estes homens? (v. 16) expressa a total perplexidade daqueles conciliares. Para finalizar, o máximo que podiam fazer era emitir uma advertência para que sob hipótese nenhuma os apóstolos falassem ou ensinassem no (gr. "sobre") nome de Jesus, isto é, fizessem de Jesus a base de seu ensino (veja a disc. sobre o v. 2), ou afirmassem ser o Senhor a fonte de sua autoridade.

4:19-20 / De sua parte, Pedro e João declararam não ter outra opção senão falar do que haviam visto e ouvido sobre Jesus (cp. João 1:14; 2 Pedro 1:16-18; 1 João 1:1; mas também João 20:29; 1 Pedro 1:8). Eles deviam a Deus toda obediência (cp. Lucas 20:25), e perguntaram a seus juizes que julgassem eles mesmos o que era justo naquela questão — obedecer a eles ou obedecer a Deus. Visto que cada um dos apóstolos é mencionado pode significar que o concilio apelou individualmente, e assim ambos responderam.

4:21-22 / O concilio "acrescentou mais ameaças às suas advertências" (este é o sentido do texto grego), mas à vista do interesse popular no milagre, aqueles homens nada mais^puderam fazer. De modo bem característico, Lucas chama nossa atenção para o louvor a Deus que esse incidente despertou (veja a disc. sobre 3:8), e também para a idade do homem (cp. 9:33; 14:8; Lucas 2:52; 3:23; 8:42; 13:11). O comentário pessoal de Lucas sobre esse incidente expressa-se no uso que ele faz da palavra "sinal" (é a que está no texto grego). Um "sinal" podia ser um simples milagre (veja a nota sobre 2:22), mas para Lucas era claramente um milagre significativo: o dia da salvação havia chegado.

 

Notas Adicionais # 8

4:3 / E os encerraram na prisão... porque já era tarde: Na Misna, Sanhedrin 4:1, está escrito: "os julgamentos a respeito de dinheiro podem iniciar-se de dia e encerrar-se de noite, mas os julgamentos a respeito da vida devem iniciar-se de dia e encerrar-se de dia". Esta proibição, baseada em Jeremias 21:12, pode ser a explicação das razões por que o julgamento dos apóstolos foi postergado até o dia seguinte. Os judeus só utilizavam o aprisionamento para propósitos de precaução, nunca como forma de punição.

4:4 / chegou o número desses a quase cinco mil: os eruditos têm achado difícil aceitar esse número, alegando estar ele inteiramente fora de proporção com a população de Jerusalém. A dificuldade torna-se maior ainda se esse número expressa apenas os homens; seria preciso dobrá-lo, pelo menos, a fim de ter-se o número total de crentes. Mas qual seria a população de Jerusalém nessa época? Hecateu de Abdera, em cerca de 300 a.C, calculou a população em 120.000 pessoas (Josefo, Contra Apião 1.161-212). De acordo com Josefo, havia chegado a 2, 7 milhões ao redor de 65 d.C. (Guerras 6.420-427; cp. 2.280-283), mas este número é demasiado elevado. As estimativas modernas sobre a população de Jerusalém nos tempos de Jesus variam entre 25.000 (Jeremias) e 250.000 (Hanson). Esta última cifra pode ser ainda demasiado alta, mas as melhorias no suprimento de água realizadas por Herodes, o Grande, permitiriam pelo menos 70.000 habitantes. É possível que se considere exces­sivo e desproporcionado até mesmo um número como 10.000 cristãos; mante­nha-se em mente, contudo, a possibilidade de nem todos esses cristãos residirem em Jerusalém. É possível que Lucas esteja nos dando uma estimativa do número de crentes nas áreas campestres também, inclusive a Galiléia (cp. 2:41, 47; 6:7; e veja a disc. sobre 9:31).

4:10 / Aquele a quem vós crucificastes, mas a quem Deus ressuscitou dentre os mortos: Esta construção com frases relativas é característica do estilo de Lucas nos primeiros sermões de Atos (2:24, 32, 36; 3:13, 15; 4:27; 5:30; 10:38, 39; 13:31, 37), onde se fazem referências às atividades de Deus em Jesus e mediante Jesus. Hanson, p. 78, acha "possível que Lucas nestas expressões esteja reproduzindo fórmulas doutrinárias primitivas".

4:11 /A sentença que faz essa citação tem uma construção esquisita. No grego aparece apenas "este é" (NIV e ECA trazem ele é). A referência clara­mente diz respeito a Jesus, mas no versículo anterior "este" (gr. houtos) refere-se ao homem que fora curado. A estranheza do texto grego pode sugerir que Lucas tenha usado uma fonte.

4:15 / Mandando-os sair fora do Sinédrio: Como foi que Lucas obteve a informação sobre o que se passou no concilio? Sua narrativa pode ter-se baseado em deduções, mas poderia ter havido alguém no concilio que se mostrasse simpático para com a igreja nascente, e que lhe teria narrado o que se passou lá dentro. A história pode ter vindo de Paulo. É bastante improvável que Paulo fosse ele próprio um dos membros do Sinédrio (veja as disc. sobre 7:60; 26:10), mas tinha grande amizade por alguém do concilio (veja a disc. sobre 5:34). Novamente surge a hipótese de Lucas ter tido acesso a fontes herodianas; a história poderia ter vindo de modo indireto mediante tais fontes (veja a disc. sobre 13:1; cp. Lucas 8:3).