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Atos 14:8-20
Atos 14:8-20

Atos 14.8-20: Em Listra e Derbe 

 

Parece que não havia sinagoga em Listra. Nesse caso, o fato de Paulo e Barnabé pregarem nessas cidades, ainda que não houvessem ido ali com esse propósito explícito, significa para a igreja uma guinada impor­tantíssima. Acrescente-se que em não havendo um auditório preparado para a mensagem deles (veja a nota sobre 13:14), tornava-se necessário nova abordagem para a pregação. Algo do que isto significou fica evidente nestes versículos; precisaram pregar de improviso, dirigindo-se a um auditório pagão. O discurso é incompleto como declaração do evangelho, visto que lhe falta a menção da cruz e da ressurreição de Jesus. E mais um preâmbulo ao evangelho, pois, numa declaração precisa da teologia natural, lança um alicerce.

Em contraste com a seção anterior, estes versículos apresentam uma narrativa rica de minúcias; é tentador imaginarmos que isto se deve a um registro de testemunha ocular, Timóteo, visto ser ele natural de Listra (veja a disc. sobre 16:1). A parte do relato que diz respeito à cura do aleijado apresenta algumas características comuns ao milagre de 3:1-10. Não deve preocupar-nos o fato de o mesmo autor descrever milagres semelhantes usando as mesmas expressões. As diferenças de minúcias são suficientes para eliminar toda dúvida quanto a não tratar-se de repetição da mesma história, embora a inclusão de uma possa ter sido determinada pela inclusão da outra, se Lucas quis demonstrar que Paulo não era um apóstolo menos eficiente do que Pedro (cp. também 8:9ss. e 13:6ss.). Quanto à seqüência, a história em que dois apóstolos são identificados com deuses é espalhafatosa demais para que Lucas a tenha inventado. Quanto à referência ao apedrejamento de Paulo, parece que este próprio o confirma.

14:8-10 / Listra ficava num vale fértil, cerca de 32 quilômetros a sudoeste de Icônio. Não muito tempo antes desses acontecimentos, a cidade havia sido parte de um pequeno principado governado por Derbe, sob a chefia de um tal de Antipáter, que mantinha bom relacionamento com Cícero (Ad Familiares, 13.73), embora outros a ele se referissem como "o ladrão". Antipáter foi expulso de seu território por Amintas, sendo que após a morte deste, Listra e Derbe foram incorporadas à província romana da Galácia. Listra foi escolhida por Augusto para ser o local de uma colônia romana que haveria de ser, à semelhança de Antioquia, um baluarte contra os ladrões das montanhas pisídias. Assim foi que a cidade recebeu alguns colonos romanos. Lá estavam também os usuais gregos. Mas a população, na maior parte, constituía-se de licaonianos (como Derbe também), e a despeito de seu "status" de colônia, parece que permaneceu como lugarejo um tanto rústico.

É possível que houvesse também um punhado de judeus na cidade (veja a disc. sobre 16:1), mas não se faz menção à sinagoga; e jamais se encontrou os escombros de alguma ali. No entanto, determinados a pregar o evangelho, os missionários precisavam tentar algo novo. O que precisavam era de um local de reuniões públicas, sendo o fórum o local óbvio. Pela mesma razão — por ser o mercado da cidade, e local de reuniões públicas — um mendigo também teria escolhido o fórum como seu ponto regular. Assim foi que o aleijado desta história "estava sentado em seu lugar costumeiro" (essa é a força do grego) quando Paulo o viu. Talvez já houvesse ouvido os missionários em várias ocasiões, mas agora seus olhos cruzaram-se com os do apóstolo. Paulo sentiu evidências de fé — "o coração do homem lhe brilhava no rosto" — de modo que o apóstolo pronunciou a palavra de cura (cp. 3:4, 6). Imediatamente ele saltou (tempo aoristo) e andava (imperfeito; v. 10; veja a disc. sobre 3:8). Lucas comenta que o homem era aleijado dos pés, coxo desde o ventre de sua mãe, e nunca tinha andado (v. 8; cp. 3:2).

14:11-14 / O milagre não aconteceu num beco deserto. De fato, parece que Paulo gritou com toda força uma ordem ao aleijado (v. 10). Portanto, grande número de moradores da cidade testemunhou o milagre. A reação dessas pessoas foi imediata e dramática (cp. 3:9s.). Era um povo pelo menos bilíngüe, que entendia e falava grego — língua em que Paulo e Barnabé devia ter-lhes pregado, além de sua própria língua nativa, e algum conhecimento de latim. Todavia, movidos por grande excitação, levantaram a sua voz, dizendo na língua Iicaônica... aclamaram a Paulo e a Barnabé como deuses. Os vv. 11 e 12 têm uma mudança de tempo semelhante àquela que observamos no v. 10, que não transparece com clareza em português. A tradução "levantaram a sua voz" é literal; houve uma explosão vocal (aoristo) e a seguir o povo prosseguiu cha­mando-os por nomes que repetiam constantemente (imperfeito). A Barnabé identificaram como sendo Júpiter, chefe do panteão grego, e a Paulo chamaram de Mercúrio, seu mensageiro, porque este era o que falava (v. 12; cp. Gálatas 4:14; veja Hanson, p. 148, quanto a outros exemplos de coisas assim). Os licaônicos talvez tivessem feito há muito tempo um sincretismo de seus deuses com os deuses gregos. Tem-se objetado que Mercúrio era o mensageiro de Júpiter, e não seu porta-voz. Isto, todavia, é argumento evasivo. Se ambos os deuses estivessem juntos, Mercúrio naturalmente seria o porta-voz. Afinal ele era o patrono dos oradores. Que o povo reagisse dessa maneira está inteiramente em consonância com o que sabemos sobre suas crenças, tendo em mente que Listra não era metrópole sofisticada. Ovídio nos relata como Júpiter e Mercúrio (contrapartidas latinas de Zeus e Hermes, deuses gregos) visitaram certa vez um casal idoso, Filemom e Baucis, no distrito vizinho da Frígia (Metamorfose 8.61 lss.). Com base nessa lenda, o povo da Frígia e da Licaônia tornaram-se afetos a realizar peregrinações ao lugar dessa suposta visita; evidências arqueológicas demonstram que o culto aos dois deuses floresceu por toda essa região até bem tarde, no terceiro século d.C. É claro que os apóstolos nada entenderam do que os licaônicos estavam dizendo, e só mais tarde é que teriam sabido que lhes haviam sido atribuídos nomes de divindades.

Só podemos imaginar quais seriam os locais em que esta história ocorreu, e precisamos presumir alguns lapsos de tempo. É possível, portanto, que Paulo e Barnabé houvessem voltado a seus alojamentos quando lhes chegaram notícias segundo as quais o sacerdote de Júpiter (deidade protetora), cujo templo estava em frente da cidade (v. 13), estava prestes a sacrificar touros em honra a eles (cp. Ovídio, Metamor­fose 4.755; Pérsio, Sátiras 2.44). As grinaldas eram usadas para enfeitar as vítimas e talvez o sacerdote, o altar, e os adoradores (cp. Virgílio, Eneida 5.366; Eurípedes, Hércules 529). Não está claro no grego a que porta se dirigia a procissão sacrificial. Alguns vêem aqui uma referência ao portão da cidade; outros, uma referência ao átrio da casa onde os apóstolos se hospedavam (cp. 10:17; 12:13). Esta última referência é defendida na base de que quando Barnabé e Paulo (a ordem de seus nomes é ditada pela referência a Júpiter e Mercúrio; veja a disc. sobre 13:9) perceberam o que estava acontecendo, saltaram [de dentro da casa] para o meio da multidão. Entretanto, a expressão podia da mesma forma significar que escapuliram da cidade, sendo este o sentido que preferimos, entendendo-se que a porta seria a do templo, que ficava fora da cidade. Portanto, eles correram para o templo, rasgando suas roupas como sinal de horror (cp. Gênesis 37:29, 34; Josué 7:6; Judite 14:16s.; Mateus 26:65), e gritando às pessoas, enquanto iam forçando o caminho por entre a multidão.

14:15-18 / Ambos, Paulo e Barnabé, falaram (cp. v. 18), mas o que temos aqui talvez seja a substância do que Paulo disse. Seu tema era que adorar a criatura (Nós também somos homens como vós, v. 15) era inescusável, visto que a criatura era apenas uma evidência do Criador, o qual merece, e ninguém mais, ser honrado. Eles, os missionários, haviam chegado, disse Paulo, e vos anunciamos o evangelho, o Deus vivo que se manifesta na criação (v. 15; cp. 4:24; 17:24 citando Êxodo 20:11). Paulo apelaria atai manifestação naturalmente, diante de auditório como aquele. Ao dirigir-se a judeus (ou a devotos), a mensagem de Paulo começaria com as Escrituras (a teologia revelada) como o anúncio de que as Escrituras haviam sido cumpridas. Mas ele prega aqui a gentios, pelo que começa pela teologia natural, e preocupa-se com a proposição básica de que há um só Deus. Este é também o Deus da história que, até O presente, deixou andar todas as nações em seus próprios caminhos (v. 16), a saber, sem convocá-las, como estava fazendo agora, e vos anunciamos que vos convertais dessas vaidades ao Deus vivo (v. 15). Esta referência pode ter sido dirigida a ídolos em geral (cp. Jeremias 2:5), ou pode ser que Paulo estivesse apontando, enquanto falava, para os preparativos que se faziam para o sacrifício. Parece que a implicação seria que eles eram inculpáveis pela ignorância de Deus no passado (veja as disc. sobre 3:17; 13:26; cp. 17:30s.), embora tudo passasse a ser diferente, agora que as Boas Novas estavam sendo anunciadas. As palavras de Paulo em Romanos 1:18ss. são mais duras, mas seu propósito ali era diferente (seja como for, cp. Romanos 3:25s.). Que vos convertais... ao Deus vivo é crer em Deus (v. 15; veja a disc. sobre 9:42). A linguagem aqui é espantosamente parecida com a de 1 Tessalonicenses 1:9, que descreve como os macedônios se haviam convertido "dos ídolos a Deus, para servirdes ao Deus vivo e verdadeiro". É provável que esta fosse uma forma de expressar a conversão dos gentios, mas algo está faltando aqui que se encontra em Tessalonicenses, que é essencialmente o componente cristão da mensagem: "e aguardar- des dos céus a seu Filho, a quem ele ressuscitou dentre os mortos, a saber, Jesus, que nos livra da ira vindoura". Paulo deve ter incluído este tópico em sua pregação em Listra, em algum tempo (embora talvez tenha silenciado neste momento) visto que surgiram discípulos ali (cp. vv. 20, 21). Todavia, Lucas achou por bem não relatar o fato integralmente. Seus leitores já haviam ouvido o evangelho em sermões anteriores. Lucas prefere relatar o que é distintivo neste sermão, isto é, o argumento de Paulo quanto à existência de Deus.

O apóstolo apresenta três provas, e em cada caso o verbo (presente do particípio) indica a natureza contínua da atividade divina. Cada prova se expande a partir da anterior. O testemunho não se dirige, como em Atenas (17:27) e em Romanos 2:15, à consciência nem à mente humanas, mas simplesmente à presença de Deus na natureza, que se demonstra, em primeiro lugar, pela misericórdia (v. 17). De modo mais específico, Deus é mostrado como estando presente (em, segundo lugar) ao enviar chuvas do céu, e colheita em sua própria estação (v. 17). Este ponto é considerado o mais incisivo, ao percebermos que Júpiter era descrito precisamente nesses mesmos termos. Tem sido sugerido até que Paulo estaria citando um hino dedicado a Júpiter, que teria sido entoado nessa ocasião (as palavras deste versículo parecem ter ritmo). A chuva era considerada sinal do favor divino; neste sermão, como no Antigo Testa­mento, a bondade e o poder de Deus, ao conceder a chuva e permitir as colheitas, contrastam com a impotência dos deuses dos pagãos (veja esp. Jeremias 14:22; cp. também 1 Samuel 12:17; 1 Reis 18:1). Como con­seqüência da chuva, Deus demonstra sua presença, em terceiro lugar, ao conceder alimento e encher os corações de alegria (v. 17). Alegria é tradução da palavra comum grega para "bom ânimo", com freqüência associada de modo especial ao vinho. Todavia, ainda que o evangelho não esteja incluído neste esboço, esta palavra pode ter tido a intenção de salientar (muito além de seu significado comum) uma felicidade mais profunda trazida por uma dádiva mais rica do que "o seu trigo e o seu vinho" (cp. Salmo 4:7), a saber, a alegria que se origina em conhecer a Jesus como Senhor (cp. 2:28, em que a mesma palavra é empregada). Com estes argumentos e com grande dificuldade, Paulo e Barnabé impediram que as multidões lhes sacrificassem (v. 18).

14:19-20 / O trabalho deles em Listra resultou num bando pequenino de crentes. Todavia, os missionários não tiveram permissão para prosse­guir sua obra em paz. O antagonismo dos judeus da Antioquia e de Icônio os perseguiu até mesmo neste lugarzinho remoto (para alguns, seria uma viagem de mais de 160 quilômetros), pois chegaram ali a fim de criar problemas (veja 13:50; 14:2, 5;também 17:13). Pode ter sido fácil a esses judeus ganhar a multidão, pelo fato de os apóstolos terem recusado as honrarias divinais (cp. 28:6; Gálatas 1:6). Entretanto, foi necessário que usassem de algum poder persuasivo. Talvez afirmassem que os dois homens eram impostores, quem sabe sugerissem que seu poder provinha de alguma força maligna. Assim foi que, tendo a multidão por trás deles, os judeus apedrejaram a Paulo, executaram a punição que haviam estabelecido em seus corações em Icônio (v. 5). Por fim, como última indignidade, pensando que estava morto (v. 19), arrastaram-no para fora da cidade, como o fariam a um saco de detritos, e atiraram-no ao monte de lixo. Entretanto, quando os discípulos chegaram (para enterrá-lo? ), encontraram-no vivo, e capaz de acompanhá-los de volta à cidade. Lucas não intenciona apresentar este caso como sendo um milagre de restauração de vida a um defunto (observe seu comentário: pensando que estava morto). Entretanto, podemos ver a mão de Deus em sua sobrevivência. Paulo demonstrou grande coragem ao regressar à cidade, embora fosse improvável que os magistrados estivessem envolvidos no linchamento, pelo que o apóstolo nada tinha que temer, em nível jurídico. Na verdade, sendo cidadão romano, podia processar seus inimigos perante os magistrados, se quisesse fazê-lo. Paulo decidiu não processar seus assaltantes, mas ir-se embora. No dia seguinte, ele e Barnabé partiram para Derbe (veja a disc. sobre o v. 21). Este incidente deve ter salientado vividamente na mente de Paulo o que havia acontecido a Estevão (7:58). Tais experiências sem dúvida deixaram marca indelével no próprio Paulo (cp. 2 Timóteo 3:11) — de modo literal, se Gálatas 6:17 é referência a cicatrizes ainda remanescentes dessa época na Galácia. Paulo menciona o apedrejamento em 2 Coríntios como parte de sua experiência apostólica.