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Atos 10:23b-48
Atos 10:23b-48

Atos 10.23b-48: Pedro na Casa de Cornélio

 

10:23b-29 / Cesaréia é, novamente, o palco onde se desenvolve o terceiro ato deste drama. Parece que a viagem à capital levou quase dois dias (v. 30). Enquanto isso, tão certo estava Cornélio de que Pedro viria, e sabendo quanto tempo aproximadamente levaria para chegar, o centurião já estava pronto, esperando seu visitante, tendo convidado os seus parentes e amigos mais íntimos (v. 24). É provável que Pedro lhes houvesse "contado tudo" que acontecera (v. 8), e por isso os convidara para testemunhar os acontecimentos subseqüentes.

Cornélio se encontra com Pedro tendo o mesmo sentimento daquele outro centurião (Lucas 7:6): ajoelhou-se humildemente diante do após­tolo. Com a mesma humildade, Pedro não aceita a reverência que pertence a Deus somente (cp. 14:14s.; Lucas 4:8; 8:41; Apocalipse 19:10; 22:8s.). Aparentemente conversaram durante algum tempo antes de entrar na casa. Talvez tenha sido dessa maneira que Pedro soube quanto conheciam da história de Jesus, visto que o apóstolo presumiu o conhe­cimento de alguns eventos da vida de Jesus ao pregar perante o grupo todo. Além do mais, o que Cornélio falara ao apóstolo, combinado com a recente experiência deste, deve ter ajudado Pedro a enxergar qual seria o último passo que dele seria exigido segundo a visão: que ele se livrasse de seus escrúpulos concernentes aos gentios. Portanto, suas palavras iniciais ao pregar ali, àquelas pessoas, foram o anúncio de que Deus lhes havia mostrado: que ele, Pedro, não considerasse nenhum indivíduo como sendo comum ou imundo (v. 28). A passagem de 1 Pedro 2:17 mostra-nos que Pedro aprendeu muito bem esta lição. A seguir, Pedro faz uma pergunta que, estranhamente, não havia sido feita antes: "Por que razão mandaste chamar-me? " (v. 29).

10:30-33 / Cornélio respondeu delineando os eventos dos últimos três dias, os quais ele via como resposta à oração (v. 31). Os detalhes diferem ligeiramente dos versículos anteriores, mas por nenhuma outra razão senão o apreço à variedade. Em essência, ambos os relatos dizem a mesma coisa. Cornélio salienta a bondade de Pedro em vir (lit, "bem fizeste em vir", que é uma expressão de agradecimento, cp. Filipenses 4:14; 2 Pedro 1:19; 3 João 6), e encerra esse preâmbulo declarando que todos estavam prontos para ouvir tudo o que te foi ordenado pelo Senhor para que dissesse a eles (v. 33). Cornélio presumiu que Pedro, como ele próprio, estivesse sob autoridade, de modo que o que Pedro lhe dissesse teria vindo por ordem de Deus. Já lhe fora dito que as palavras de Pedro o levariam à salvação (11:14). Portanto, a salvação de Cornélio estava na obediência. Observe a referência ao fato de estarem ali reuni­dos, todos presentes diante de Deus (v. 33). Em certo sentido, isto é verdade a respeito de qualquer situação desta vida, mas de modo inigua­lável quando o evangelho está sendo pregado. Todos quantos se reúnem em tais circunstâncias fazem bem em levar em consideração quem está ali acompanhando-os (cp. Mateus 18:20).

10:34-35 / Este sermão constitui o primeiro registro das Boas Novas ao mundo gentio. É preciso presumir, evidentemente, que ali se encon­travam quase que só pessoas devotas, "tão piedosas" quanto o próprio Cornélio, as quais estavam portanto familiarizadas com as Escrituras judaicas. Presumimos, também, que aquele grupo conhecia um pouco da história de Jesus. Assim é que estavam todos mais ou menos preparados para a mensagem que ouviram, coisa não muito típica do mundo gentílico em geral. Pedro pôde pregar-lhes como se pregasse a judeus; só quando chegarmos aos sermões de Paulo em Listra e Atenas é que vamos encontrar uma forma distintiva de pregar aos gentios. Entretanto, aqui estão pessoas gentílicas, fato que traz uma nova e importante mudança na igreja.

Noutros aspectos também este sermão demonstra um interesse pecu­liar. Tem sido observado com muita freqüência que os versículos 37 a 40, que dão grande atenção à vida terrena de Jesus, sendo um sermão singular dentre os demais sermões deste livro, poderiam ter constituído a base do evangelho de Marcos. Em vista da associação tradicional existente entre Pedro e Marcos, isto dificilmente poderia ser acidental (veja também a disc. sobre 3:7s.; 10:14; 12:1-5). Além disso, há um evidente desenvolvimento teológico, em comparação com os sermões anteriores de Pedro (2:14-39; 3:12-26). Este fato, aliado à circunstância que tudo se encaixa tão bem em sua experiência em Jope e Cesaréia, dá-nos toda confiança de afirmar que temos nestes versículos uma indicação excelente do que foi que Pedro disse neste momento. Só podemos aventar hipóteses quanto à maneira de como Lucas teve acesso a este sermão, mas as evidências apontam com força para o uso de alguma fonte. "Trata-se de um texto grego onde a gramática é a mais errada de todos os outros que Lucas escreveu. Não se consegue evitar a impressão de que Lucas, como de costume fazia, deu ao texto sua forma final, conservando nele, entretanto, certos elementos mais antigos" (Hanson, p. 124).

Lucas exprime o senso de oportunidade de Pedro mediante o emprego da expressão: Abrindo Pedro a boca, disse (v. 34; NIV traz: "começou a falar"), que muitas vezes marca uma ocasião particularmente solene. Pedro pôs-se a comentar a mudança que ocorrera em seu próprio pensa­mento: Na verdade reconheço que Deus não faz acepção de pessoas (v. 34). A frase "na verdade" expressa tanto sua surpresa diante da descoberta como sua compreensão do que agora lhe é revelado. Não era coisa totalmente nova (cp. Deuteronômio 10:17; 2 Crônicas 19:7; Jo 34:19; Malaquias 2:9), mas tratava-se de uma verdade que os judeus em grande parte haviam perdido. Quanto a Pedro, bateu-lhe como se fora uma nova descoberta essa doutrina da imparcialidade de Deus. Daí decorre que qualquer pessoa teria aceitação perante Deus, não por causa de sua nacionalidade, mas segundo sua adequada disposição de coração: mas que lhe é agradável aquele que, em qualquer nação, o teme e faz o que é justo (v. 35). Isto não significa que nada mais é necessário. A ênfase em Jesus neste sermão dá-nos a certeza disto. Jesus é essencial à nossa salvação. Pedro queria dizer, em suma, que se a atitude da pessoa estiver correta, em razão das Boas Novas, tal pessoa (qualquer pessoa) pode salvar-se, e que ninguém precisa perder-se. A seguir, sem mais delongas, Pedro entregou-lhes a palavra salvadora que precisavam ouvir, e que motivava aquela reunião.

10:36-38 / As Boas Novas tiveram início com Deus. As Boas Novas eram sua mensagem, que ele enviou aos filhos de Israel. Eram Boas Novas relacionadas à paz por Jesus Cristo (v. 36), ou seja, Cristo foi o agente de Deus que trouxe a paz entre Deus e a humanidade (cp. 2 Coríntios 5:18ss.). Paz aqui é sinônimo de salvação. A última parte do versículo 36 fica à parte, não ligada à sintaxe da sentença, como que entre parênteses, quase como se o pregador houvesse emitido uma falsa impressão sobre Jesus. De fato Jesus foi o agente de Deus, não todavia como outros haviam sido. Diferentemente de qualquer outro, Jesus é o Senhor de todos (cp. Romanos 14:9). Fazia já muito tempo que Pedro considerava Jesus como "Senhor e Cristo", como em 2:36, e para todos os propósitos e objetivos, atribuindo-lhe um lugar na Trindade (veja a disc. sobre 1:24). Entretanto, seus horizontes sempre haviam sido os de um judeu, e jamais havia pensado em Jesus senão como Senhor e Cristo dos judeus (veja a disc. sobre 2:39). Durante todos aqueles anos, o Deus de Pedro havia sido demasiado pequeno. Agora ele conseguia ver seu erro.

Este era um terreno novo para Pedro, mas no v. 37 o apóstolo voltou a um território mais bem conhecido (e até certo ponto, familiar também para Cornélio e seus amigos), a saber, Pedro voltava aos acontecimentos ocorridos em toda a Judéia, tomando-se Judéia em seu sentido mais amplo, para abranger todo o território judaico (cp. Lucas 1:5; 7:17; 23:5). Esta nota concernente à extensão geográfica do ministério de Jesus pode muito bem ser uma característica de Lucas, assim como é o cuidado com que o autor separa o ministério do Senhor do de João Batista (em comparação com Marcos). Isto nos assegura que Jesus não é imaginado como sucessor de João Batista. De modo muito genérico o esboço de Pedro sobre "o grande acontecimento"- iguala-se ao que encontramos em Marcos, a proclamação da palavra, começando pela Galiléia, depois do batismo que João pregou (v. 37; cp. "desde o batismo de João", 1:22; cp. também Marcos 1:4, 14ss.). O ministério de Jesus é descrito princi­palmente em termos de ele curar a todos os oprimidos do diabo — um tema de grande proeminência no Evangelho de João (cp., p.e., Marcos 1:23, 32, 39; quanto à construção gramatical em que se usa a oração reduzida de gerúndio "curando a todos os oprimidos do diabo", veja as notas sobre 4:10). É possível que Pedro tenha considerado esta cura superior às demais, de tal modo que se poderia presumir a habilidade de Jesus para cuidar dos menos afortunados. Portanto, a única coisa que ele poderia afirmar a respeito de seu Mestre era que ele andou fazendo o bem (v. 38, grego euergetein; o substantivo correspondente, euergetes, "benfeitor", era aplicado comumente no mundo antigo aos governantes). As boas obras de Jesus são atribuídas ao Espírito Santo com poder, com o qual Deus ungiu a Jesus de Nazaré (v. 38). Alguns interpretam esta expressão como referindo-se à encarnação (cp. Lucas 1:35), mas visto seguir-se à referência a João Batista, é melhor interpretá-la como rela­cionada ao batismo de Jesus. O próprio Senhor havia afirmado que fora "ungido" com o Espírito ("me ungiu"), sem salientar quando (Lucas 4:18). Todavia, o fato de ele ser ungido significava que Deus era com ele (v. 3 8). Esta última declaração parece desenhar uma linha bem grossa entre Jesus como homem, e a fonte divina de seu poder. É certo que nenhuma dúvida havia a respeito da humanidade de Jesus (cp. v. 38, "Jesus de Nazaré"). Tampouco havia alguma dúvida quanto a ser ele mais do que simples homem, visto haver recebido por direito os títulos divinos de o Senhor de todos (v. 36) e "juiz dos vivos e dos mortos" (v. 42). A confirmação de que Jesus é apropriadamente chamado por esses títulos está em sua ressurreição.

10:39-41 / Como no evangelho, Pedro traçou o ministério de Jesus a começar pela Galiléia até a terra da Judéia, a saber, a Judéia no sentido estreito da província romana (cp. v. 36) e, finalmente, a Jerusalém, onde o Senhor morreu (v. 39). O papel desempenhado pelos apóstolos (o pronome nós de nosso texto) como testemunhas é mencionado de modo especial em relação a esse ministério, não porque o ministério anterior não havia sido importante no testemunho deles, mas porque a morte e ressurreição de Cristo eram o ponto crucial da questão, sem as quais não poderia haver Boas Novas (veja a disc. sobre l:21s.; cp.2:32; 3:15; 5:32). Encontramos de novo no v. 39 a expressão que notamos anteriormente, em 5:30: mataram a Jesus pendurando-o num madeiro (veja a disc. sobre este versículo e também 2:23). É possível que antes Pedro houvesse usado essa expressão a fim de salientar perante os judeus todo o horror do ato que praticaram. É claro que essa não foi sua intenção aqui, mas aquela expressão veio a tornar-se seu modo de declarar o que havia acontecido (cp. 1 Pedro 2:24). Entretanto, ficamos imaginando que idéia é que os romanos, para quem a crucificação era a mais vergonhosa das formas de morte, faziam das "Boas Novas" segundo as quais "o Senhor de todos" havia sido pregado numa cruz pelas suas próprias tropas. Só se podia crer nas afirmativas de Pedro a respeito de Jesus na base de que Deus o ressuscitou ao terceiro dia (v. 40). Esta é uma de apenas duas referências fora dos evangelhos à ressurreição de Jesus como tendo ocorrido no "terceiro dia". A outra encontra-se em 1 Coríntios 15:4. Esta é uma expressão característica do Evangelho de Lucas, onde ela ocorre seis vezes. O versículo 40 apresenta um comentário extraordinário segundo o qual nada foi acidental, por obra do acaso, mas Deus...fez que se manifestasse — por apenas um punhado de pessoas — admite-se; todavia, eram as mais bem qualificadas para serem suas testemunhas.

Para isso mesmo foi que Deus antes ordenara tais pessoas (v. 41; cp. João 17:6ss.), e elas convenceriam as demais. Em suas mentes não havia a menor sombra de dúvida de que Jesus havia ressurgido, porque haviam comido e bebido com ele. Esta observação a respeito de as testemunhas haverem bebido com Jesus corrobora as informações dos evangelhos (Lucas 24:30, 43; João 21:12, 15; mas veja Lucas 22:18).

10:42-43 / Por fim, Jesus atribuiu uma missão a suas testemunhas (os apóstolos). É a ocasião a que se refere 1:4; Lucas repete aqui o verbo empregado lá, a fim de expressar de novo a urgência da ordem: Ele nos mandou pregar ao povo (v. 42). O povo (gr. laos) em geral significa judeus (veja a disc. sobre 5:12), mas o objetivo de Jesus é que eles pregassem aos gentios também (cp. p.e., 1:8; Mateus 28:19) e, nesse contexto (cp. v. 34), a esse termo é preciso que se dê esse significado mais amplo. A mensagem que os apóstolos deviam pregar... e testifi­car (veja a disc. sobre 2:40) em parte era que Jesus agora havia sido constituído juiz (v. 42). Paulo deveria dar testemunho dessa mesma verdade em Atenas (17:31; cp. também 24:25; quanto ao regresso de Jesus, veja a disc. sobre 1:10s.). A ordem para que se proclamasse a Jesus como juiz não se encontra em nenhum dos relatos sobre as palavras finais do Senhor; todavia, dada a natureza altamente condensada de todos estes relatos, esta parte da ordem não nos surpreende. Trata-se de uma idéia que obteve seu lugar no ensino do próprio Jesus (cp. Lucas 12:8s.; 19:11-27; João 5:22, 27), de modo que não devemos duvidar de que estivesse incluída em suas últimas "instruções" (1:2). A descrição de Jesus como juiz dos vivos e dos mortos (v. 42) é adendo ao pensamento do v. 36, em que ele é "o Senhor de todos", e antecipa a ressurreição geral, quando haverá a "ressurreição tanto dos justos como dos injustos" (24:15). O critério tanto de julgamento como de salvação está indicado no v. 43: todos os que nele crêem ("em ele" — é a idéia de entrega a Cristo, cp. 14:23; 19:4; 24:24; 26:18) receberão o perdão dos pecados; os que não crêem — a implicação é clara — permanecerão em seus pecados e enfrentarão o Senhor Jesus como Juiz (cp. João 8:21, 24). Observe-se o emprego do plural, "todos". Ao pensamento do senhorio universal de Cristo esse plural acrescenta a advertência de que somos todos — individual e coletivamente — responsáveis perante o Senhor. A importância da fé em Cristo fica sublinhada pelo fato de Lucas colocar essas palavras no final do versículo (no grego, é posição de destaque). A expressão pelo seu nome (v. 43) faz-nos lembrar de novo do papel indispensável desempenhado por Cristo em nossa salvação — uma salvação que todos os profetas (aqui mencionados de modo coletivo, como em 3:18) viram de antemão (v. 43). É evidente que os profetas haviam pregado que Deus seria a Pessoa que haveria de salvar; todavia, o direito de exercer misericórdia e de perdoar livremente (Isaías 55:7) havia sido atribuído a Jesus, quando Deus o fez "Senhor e Cristo" (2:36). Com tão elevada nota, embora sem intenção alguma, encerrou-se o sermão.

10:44 / Dizendo Pedro ainda estas palavras (o verbo "comecei" de 11:15 pode significar meramente que Pedro ainda não havia terminado), caiu o Espírito Santo sobre todos os que o ouviam. Uma comparação entre esta passagem com outras de Atos, nas quais se descreve a vinda do Espírito Santo, revela-nos uma porção de diferenças (2:lss.; 8:14ss.; 9:17; 19:1 ss.; veja também a nota sobre 18:25). A vinda do Espírito não dependeu de confissão pública de pecados, nem do passar do tempo. Não se orou para que viesse; tampouco veio após o batismo com água, ou mediante a imposição de mãos. O Espírito simplesmente veio enquanto estavam ou­vindo, com corações receptivos, atentos ao que Pedro dizia. Quando o apóstolo mencionou o perdão de pecados para todos que crêem em Jesus (v. 43), todos creram. Com isto concorda a própria descrição que Pedro faz desse acontecimento (11:17), e com a resposta implícita à pergunta feita por Paulo em Gálatas 3:2: "Recebestes o Espírito pelas obras da lei, ou pela pregação da fé? " Em suma, a fé em Cristo é o elemento essencial para que se receba o Espírito de Deus.

10:45-46a / Os companheiros judeus cristãos de Pedro (e talvez o próprio Pedro) ficaram espantados diante do que aconteceu (v. 45). Os judeus tinham um ditado segundo o qual o Espírito Santo jamais vinha a um gentio; no entanto, era inquestionável que Deus havia derramado o dom do Espírito Santo àqueles gentios (v. 45). O genitivo regido por "de" na frase "o dom do Espírito Santo" deve ser entendido como se fora um aposto — o dom era o próprio Espírito, cuja presença se evidenciou pelo falar em línguas (v. 46), talvez como fenômeno de êxtase, à semelhança de 1 Coríntios 12-14 e noutras passagens (veja a disc. e as notas sobre 2:4).

10:46b-48 /Ninguém poderia dizer, a partir de agora, que estes gentios eram "imundos ou impuros" nem impedir que recebessem o rito da admissão à igreja, visto que acabavam de receber o Espírito, exatamente da mesma maneira como os crentes judeus haviam recebido (no Pente­coste, cp. 11:15). A expressão também...como nós não significa que os dois eventos foram iguais em todos os aspectos, mas que havia semelhanças suficientes para despertar a comparação. Assim foi que Pedro levantou a questão: Pode alguém recusar (gr. kolyein, "impedir") a água, para que não sejam batizados estes? (v. 47; veja a disc. sobre 8:36 quanto à possibilidade de essa pergunta ter sido formulada com base numa liturgia batismal). No texto grego, a palavra água é regida do artigo, dando o sentido de "a água do batismo". Ninguém levantou objeções, pelo que Pedro ordenou que Cornélio e seus amigos fossem batizados em nome do Senhor (v. 48). Essa preposição é instrumental (gr. en). As pessoas deviam ser batizadas mediante uma fórmula que empregava o nome do Senhor (cp. epi, "sobre", em 2:28 e eis, "em", de 8:16). Não ficamos sabendo quem administrou o rito; aparentemente não foi o próprio Pedro. É possível que ele estivesse consciente do velho perigo de partidarismo que Paulo procurava evitar, não batizando ele próprio os seus convertidos, pelo menos como regra gera! (cp. 1 Corín­tios 1:14-17). Nenhuma referência se fez à circuncisão (cp. 11:3), nem a quaisquer outras coisas que representassem um adendo ao batismo. Pedro foi convidado a ficar na casa de Cornélio, e de 11:3 fica evidente que o apóstolo aceitou o convite (o grego diz "certos dias", não necessa­riamente alguns dias, como diz NI V). A aceitação da parte de Pedro da hospitalidade gentílica deu expressão prática à verdade teológica que ele vinha pregando (vv. 34ss.).

 

Notas Adicionais # 27

10:25-27 / Entrando Pedro... entrou: O texto ocidental elimina essa estranheza, a repetição do verbo entrar, fazendo que a primeira menção diga respeito a Pedro "entrando" na cidade e a segunda, na casa de Cornélio: "Quando Pedro se aproximava de Cesaréia, um dos escravos correu à frente e anunciou sua chegada. Cornélio, então, levantou-se de imediato para ir a seu encontro..." É evidente que este texto representa uma glosa, baseada no costume de enviar-se um escravo a encontrar-se com uma pessoa de notoriedade.

10:28 / Não é lícito a um judeu ajuntar-se, ou achegar-se a estrangeiros: A palavra traduzida por estrangeiro não é a comumente empregada para "gentio". Lucas usou aqui allophylos, que significa "alguém de raça diferente", que só se encontra aqui em todo o Novo Testamento. Para um judeu, significaria um modo bem mais delicado de referir-se a um gentio. É evidente que essa palavra é de Lucas, mas este poderia ter querido demonstrar com que gentileza Pedro tratou dessa situação. Em 11:3 não existe tal delicadeza. Na maior parte dos casos, a atitude dos judeus dos tempos pós-bíblicos era extremamente rude para com os não-judeus. Para os judeus, os gentios não tinham Deus, eram rejeitados pelo Senhor e entregues a toda forma de imundícia. Relacionar-se com eles significava contrair a imundícia deles (veja, p.e., Midrash Rabbah sobre Levítico 20; também Juvenal, Satires 14.103; Tácito, História 5.5). Alguns judeus admitiam que os gentios tivessem alguma participação limitada no reino de Deus, mas a maioria os considerava destituídos de toda esperança e destinados ao inferno. Vemos, então, como o ensino de Jesus deve ter-lhes parecido surpreendente nesse contexto cultural; o Senhor destruiu a expectativa popular ao incluir os gentios no reino, e ao excluir os judeus (descrentes) segundo Mateus 8: lis.; Lucas 13:29. Como aconteceu à maior parte dos ensinos de Jesus, seus discípulos tiveram dificuldade em aceitar este fato.

10:36-38 / A frouxidão gramatical desse discurso atinge seu ápice nestes versículos. Literalmente, o v. 36 diz: "A palavra (acusativo) que ele enviou aos filhos de Israel, dando boas novas de paz, mediante Jesus Cristo, ele é Senhor de todos". Não existe um verbo principal que governe "palavra". No v. 37, "começando" é termo que dilacera a gramática. É um particípio com nominativo masculino singular, não podendo aplicar-se a nenhum substantivo dessa senten­ça; então deve-se presumir que seja Jesus o sujeito da oração.

10:48 / E mandou que fossem batizados: Quem recebeu esse batismo foi Cornélio e o grande grupo ("muitos que ali se haviam ajuntado", v. 27), incluindo, podemos fazer essa suposição, "toda a sua casa" (v. 2). Que a família toda e até mesmo os serviçais da casa (escravos, etc.) fossem batizados junta­mente com o chefe da casa teria sido uma presunção natural naquela sociedade, como também um sinal de solidariedade familiar, além de demonstração da fé individual (cp. 16:15, 33; 18:8; 1 Coríntios 1:16; 16:15; a solidariedade da família também poderia exercer efeitos nocivos, como em Tito 1:11). É preciso que se enfatize que, para fazermos parte do corpo de Cristo, não interessa a ascendência física e tampouco a prática de um ritual (cp. p.e., Gálatas 3:11, 26).