Atos 8:9-25
Atos 8:9-25

Atos 8.9-25: Simão, o Mago 

 

8:9-11 / No meio das multidões que unanimemente prestavam atenção ao que Filipe dizia (v. 6), salientava-se um tal de Simão, o mago (veja as notas). Ele praticava artes mágicas e encantamentos do oriente e, mediante isso, conseguia enganar os samaritanos já desde muito tempo (v. 11). Eles o chamavam de o grande poder (v. 10), aparente­mente por sugestão dele mesmo (v. 9). Graças ao Novo Testamento e, na verdade, através de outras fontes relacionadas aos samaritanos em particular, ficamos sabendo que a palavra "poder" era um nome dado a qualquer ser angélico ou divino (cp., p.e., Romanos 8:38; Efésios 1:21; 3:10), e às vezes ao próprio Deus (Marcos 14:62). À luz destes fatos, parece que os samaritanos acreditavam que Simão era a encarnação de uma personagem dessa natureza sobrenatural. Não é de admirar, portan­to, que todos o atendiam (v. 10), embora com ironia gentil Lucas empregue o mesmo termo (no grego) tanto aqui como no versículo 6, a fim de descrever a atenção que o povo então dava a Filipe.

8:12-13 / A pregação de Filipe aqui é descrita como sendo acerca do reino de Deus que agora, evidentemente, girava em torno da Pessoa e da obra de Jesus Cristo (v. 12; veja a disc. sobre 1:3 e as notas e a disc. sobre 19:8). O resultado dessa pregação foi que muitos samaritanos acabaram crendo em Filipe, isto é, deram crédito àquilo que ele lhes falava e assim creram em Jesus como o Messias. Por causa disso, batizavam-se, tanto homens como mulheres (v. 12; veja a disc. sobre 1:14). Por razões próprias, que logo haveriam de tornar-se claras, Simão, o mago, também professou sua fé e foi batizado, depois do que ficou de contínuo com Filipe ("ele prestava máxima atenção", veja a disc. sobre 2:42), e estava admiradíssimo ao ver os sinais e as grandes maravilhas (lit, "poderes") que estavam sendo realizados (v. 13; veja a nota sobre 2:22). Temos aqui, talvez, mais um toque de ironia de Lucas, visto que Simão era considerado "o grande poder", e durante muito tempo havia maravilhado as pessoas (vv. 9-11). O que o impressionou a respeito da nova fé foi o poder, e não a santidade (v. 23).

8:14-17 / Quando chegou a Jerusalém a notícia de que Samaria recebera a palavra de Deus (v. 14; refere-se genericamente a toda a região), os apóstolos enviaram Pedro e João para lá. O fato de estes dois terem sido enviados pelo grupo todo, que agia como um colegiado, demonstra que nenhum líder havia emergido dentre eles (veja a disc. sobre 9:27 e as notas sobre 11:30 e 12:17). Mas, afinal, por que é que Pedro e João foram enviados? Antes de tentarmos responder a esta pergunta, devemos primeiro observar as expressões que são empregadas com referência a esses samaritanos: "as multidões unanimemente pres­tavam atenção ao que Filipe dizia" (v. 6); "como cressem em Filipe, que lhes pregava acerca do reino de Deus" (v. 12); Samaria recebera a palavra de Deus (v. 14); foram batizados em nome do Senhor Jesus (v. 17); no grego, a preposição "em" expressa a idéia de fidelidade àquele em cujo nome o batismo foi administrado (veja a nota sobre 2:38 e a disc. sobre 14:23 e 19:5); finalmente, como resultado de tudo isso, "havia grande alegria naquela cidade" (v. 8). Não há qualquer indício de fraqueza na fé daqueles irmãos. É certo que Filipe não conseguia ver qualquer deficiência na fé, pois do contrário não os teria batizado. Tampouco Pedro e João encontraram falta de alguma coisa, tanto quanto sabemos, pois nada mais lhes ensinaram, mas impuseram-lhes as mãos (todavia, cp. v. 25). É bastante difícil crer, portanto, que a obra do Espírito, quanto à regeneração, ainda não houvesse sido realizada na vida daqueles crentes. No entanto, os apóstolos oraram por aqueles samarita­nos para que recebessem o Espírito Santo, porque sobre nenhum deles tinha ainda descido (vv. 15, 16). Lucas, ao fazer uso do termo Espírito Santo (forma anarthrous, sem o artigo definido, como no-lo revela o texto grego dos vv. 15, 17 e 19), quase sempre parece infundir maior ênfase na atividade do Espírito em vez de na pessoa do Espírito. O que poderia estar faltando em Samaria era a manifestação externa daquela atividade, que se torna mais evidente nos dons do Espírito (cp. 10:46; 19:6). A referência no v. 18 ao fato de Simão, o mago, ver algo, quando o Espírito foi dado, pode exemplificar esta hipótese, como também a expressão verbal "tinha descido" (lit, v. 16), que em 10:44 e 11:15 é empregada a respeito de o Espírito "descer" de maneira tal que sua presença era marcada por sinais externos. Apressamo-nos em dizer, entretanto, que nem sempre esta é a maneira de o Espírito vir, como 1 Coríntios 12:29s. deixa bem claro.

Todavia, permanece a pergunta: Por que foram os apóstolos enviados a Samaria? Não existe indicação alguma de que a imposição de mãos, menos ainda a dos apóstolos, fosse um rito necessário ou mesmo normal à iniciação cristã. Tampouco foi incomum durante certo período que algum tempo decorresse entre o batismo e o recebimento (experiência) do Espírito (cp. 9:17s.; 10:44; 1 Coríntios 12:13). Nem temos alguma razão para pensar que o dom do Espírito fosse administrado exclusiva­mente pelos apóstolos — ou por qualquer outra pessoa. Na verdade, um exame cuidadoso de Atos nos mostra que o padrão de conversão e iniciação varia de caso para caso, em todos os eventos cujos pormenores estão registrados. O único elemento comum é a presença da fé em Jesus, marcada pelo sinal externo que é o batismo em/sobre o nome do Senhor. Decorrentes disso, duas observações precisam ser feitas: Primeira, ne­nhuma resposta satisfatória a essa pergunta pode ser conseguida se em sua formulação forem desprezados os fatores peculiares sociais e histó­ricos pertinentes a essa situação. Era preciso ficar bem claro para os samaritanos que eles passaram a fazer parte integralmente da comunida­de cristã. Se não houvesse um elo de ligação forte e claro entre a igreja da Samaria e a de Jerusalém, o cisma- que durante tanto tempo havia embrutecido o relacionamento judaico-samaritano continuaria a desen­volver-se no seio da igreja cristã. Poderia facilmente ter havido judeus cristãos que "não se dariam com" os cristãos samaritanos (cp. João 4:9), se não houvesse algo semelhante àquele ato que uniu a obra de Filipe à dos apóstolos de Jerusalém. Segunda observação: qualquer que seja a explicação dada, seria grave erro tratar desse incidente como se fosse o padrão determinante de todas as admissões à igreja.

8:18-19 / Quando Simão viu o que havia acontecido, deu a conhecer o verdadeiro motivo de sua aparente conversão. Ele também queria o mesmo poder que vira operar primeiramente em Filipe e agora vê em ação no ministério dos apóstolos. Julgando que aquele poder estaria à disposição mediante compra, ofereceu-lhes dinheiro, isto é, a Pedro e a João (v. 18; cp. 2 Reis 5:20ss.). Segundo o costume da época, Simão talvez tivesse adquirido alguns segredos dos mestres da mágica e do ocultismo (cp. 19; 19) e, sem dúvida, imaginasse que estaria prestes a realizar a mesma façanha novamente e, assim, restaurar e até mesmo aumentar sua antiga reputação.

8:20-23 / Mas Pedro logo o colocou em seu lugar, e em termos inconfundíveis (cp. 5:3, 4, 9). De fato, o apóstolo declarou que Simão era um réprobo não regenerado, e queria que ele e seu dinheiro fossem à perdição. Estaria ele pensando em Judas, ao dizer isso? O fato de Simão ter pensado que a obtenção do dom de Deus dessa maneira, a fim de administrá-lo a qualquer pessoa à vontade, sem a mínima consideração quanto à fé ou ao arrependimento, demonstra quão insignificante era seu entendimento de Deus e seus dons. Tal pensamento proviera de um coração... não reto diante de Deus (v. 21; esta frase é tirada do Salmo 78:37; cp. 13:10). A despeito de sua profissão de fé e batismo, Simão não tinha "parte nem sorte neste ministério" ("nesta mensagem", segun­do o texto grego), isto é, Simão não havia entendido o significado do batismo, tampouco havia confessado a Jesus Cristo como Senhor, nem recebido a salvação. Além do mais, quando Pedro lhe ordenou que se arrependesse e orasse pedindo perdão, a construção grega exprime dúvida de que ele o faria, tão longe ele parecia estar de Deus. O versículo 23 diz literalmente: "Pois vejo que estás para o fel de amargura e uma corrente de pecado". A segunda metade desta declaração faz-nos lembrar de Isaías 58:6; a primeira metade deriva de Deuteronômio 29:18. Nesta parte, todo e qualquer afastamento de Deus é descrito como "raiz que produz frutos venenosos e amargos". O sentido exato em que Pedro aplicou estas palavras a Simão depende de nossa interpretação da prepo­sição grega eis. Em geral esta é tomada como equivalente a en, "em", significando que Simão estava nessa condição, que esse homem era "uma planta venenosa e amarga" e em laço de iniqüidade. Todavia, essa preposição tem sido tomada como sendo equivalente a hos, "como", denotando a função iníqua que Simão desempenharia na igreja se conti­nuasse iníquo. Este é o sentido da expressão semelhante encontrada em Hebreus 12:15.

8:24 / Não ficou bem clara a intenção do pedido final de Simão a Pedro e a João. Pode exprimir arrependimento genuíno. É certo que não houve condenação adicional sobre Simão, e o pedido de oração a seu favor não elimina a possibilidade de ele ter orado por si mesmo. Tampouco devemos permitir que as histórias posteriores a respeito de Simão ter-se tornado um arqui-herege venha colorir nossa interpretação desta passa­gem. Entretanto, apesar de tudo isso, permanece a suspeita de que Simão ficou mais interessado em livrar-se da punição do que em voltar-se de verdade ao Senhor (cp. 1 Samuel 24:16; 26:21).

8:25 / Encerra-se a história com uma declaração sumária mediante a qual ficamos sabendo que os apóstolos ministraram mais instruções aos crentes (quanto à expressão "tendo eles testificado e falado", veja a disc. sobre 2:40), depois do que iniciaram sua viagem de regresso, sempre pregando, ao entrar nas cidades dos samaritanos. É possível que Filipe os tenha acompanhado, visto que isso dá melhor sentido ao versículo 26. Assim foi que a obra entre os samaritanos encerrou-se como trabalho conjunto de judeus gregos e judeus hebreus. O retorno de Filipe a Jerusalém (se é que tal aconteceu) pode ter ocorrido após a perseguição que se abateu contra os crentes, movida por Paulo (9:31). Não existe uma cronologia exata nesta parte de Atos.

 

Notas Adicionais # 20

8:9 / Estava ali certo homem chamado Simão, que anteriormente exercera naquela cidade a arte mágica, e tinha iludido a gente de Samaria:

Não há a mínima necessidade de duvidar que Simão fosse uma personagem histórica, conquanto tenhamos de descartar grande parte da lenda que se relaciona ao seu nome. Lucas o descreve como um mago, ou antes como praticante de ilusionismo ou ocultismo. De modo estrito, os magos formavam a casta sacerdotal da Pérsia, e visto que a religião da Pérsia era o zoroastrismo, tais homens eram seus sacerdotes. Strabo (Geografia 15.727 e 733) e Plutarco (On Isis and Osiris [Sobre Isis e Osíris] 46) estavam familiarizados com esses magos na área do Mediterrâneo. Esses sacerdotes aparecem no Novo Testamen­to em Mateus 2:1-12; Atos 8:9-24; 13:6-11. Josefo (Antigüidades) 20.141-144, conta-nos de um mago de Chipre, chamado Átomos, que estava ligado à corte de Félix, em Cesaréia. Os magos de Atos, bem como os de Josefo, eram judeus ou samaritanos. Isto deixa bem claro que o termo de modo algum esteve confinado aos persas, mas chegara a indicar uma forma de "profissão". Neste sentido, Filo elogia abertamente os magos por causa da pesquisa que realizaram sobre fatos da natureza (ele chama isso de "verdadeira magia; veja Every Good Man fs Free [Todo Homem Bom é Livre], 74, e On the Special Laws [Sobre as Leis Especiais], 100). Uma apreciação semelhante a respeito dos magos encon­tra-se em Cícero (De Divinatione 1.91). Entretanto, nem todos os magos usufruíam (ou mereciam) tão excelente reputação. O termo "mago" também é aplicado aos adeptos de vários tipos de magia. A estes se refere Filo chaman­do-os "mendigos charlatões e parasitas" (Special Laws [Leis Especiais] 3.101); cp. também Juvenal Satires (Sátiras), 6.562; 14.248; Horácio (Sátiras) 1.2.1). Parece que Simão teria pertencido a esta segunda categoria de magos. Ramsay descreve os magos (em especial os do tipo inferior, que apelavam para a superstição largamente divulgada no mundo antigo) como sendo a influência mais forte existente no mundo; ela destruiria o cristianismo, ou o cristianismo a destruiria (Paulo p. 79).

8:10 / o grande poder de Deus: (é trad. lit). A qualificação "de Deus", talvez tenha sido acrescentada por Lucas, para benefício de seus leitores. No que concernia aos samaritanos, a palavra poder por si sugeria o sobrenatural, senão o divino. O adjetivo grande parece supérfluo, a menos que megale não seja o adjetivo grego, mas a transliteração de uma expressão samaritana que signifi­cava "revelador". É possível que Simão tenha atribuído a si próprio o título de "o poder revelador".