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Atos 7:54-8:1a
Atos 7:54-8:1a

Atos 7:54-8:1a: O Apedrejamento de Estevão 

 

É difícil evitar a conclusão de que, em parte, Lucas modelou a vida e a morte de Estevão segundo a história do evangelho. Os elementos modeladores incluem o ministério de Estevão, os milagres e a pregação da palavra, a incapacidade de seus adversários para vencê-lo no debate, o julgamento perante o Sinédrio, as falsas testemunhas, as perguntas do sumo sacerdote, a referência ao Filho do homem, a oração de Estevão moribundo, e o pedido de perdão para seus assassinos. Até certo ponto, tudo isso pode ter constituído puro recurso literário — o desejo de Lucas de manter a consistência de estilo. Também pode ter havido uma moti­vação teológica, a saber, mostrar que Cristo continuou a sofrer no corpo do seu discípulo, e no seu corpo, a igreja (veja a disc. sobre 1:1 e a introdução a 5:17-42). Entretanto, as diferenças entre as duas narrativas são tão importantes quanto as similaridades (veja, p.e., Hengel, Jesus, pp. 21 s.), sendo estas de tal ordem qué nos permite crer na historicidade essencial desta narrativa. Seja como for, o real significado de Estevão para Lucas não estava em sua semelhança com Jesus, mas principalmente no que Estevão exemplificava quanto à história da igreja, neste ponto — um impulso para mudanças que colocaria a igreja em novos rumos, partindo de Jerusalém "até os confins da terra" (1:8), e do judaísmo para o cristianismo, levando as Boas Novas a todos os povos. A sugestão de que o martírio de Estevão teria sido influenciado pelo julgamento de Paulo (cp., p.e., 21:28; veja a disc. sobre 19:21-41) tem base insignifi­cante.

7:54 / Quando Estevão encerrou seu sermão, os papéis das pessoas envolvidas em seu julgamento se inverteram. Foi como se o Sinédrio estivesse sob julgamento e o sermão de Estevão fosse a acusação. Estando a palavra de Estevão denunciando-os com voz de trovão, teria sido muito pouco provável que eles lhe permitissem prosseguir, ainda que o orador pretendesse falar mais. Nenhuma acusação era mais odiosa para o judeu do que a de ter quebrado a lei (cp. João 7:19), e ninguém, mais do que Estevão, teria conseguido acusar o Sinédrio com mais vigor de ter quebrado a lei. A reação dos conciliares foi violenta, expressa em termos semelhantes aos de 5:33, mas com o comentário adicional de que rangiam os dentes contra ele (cp. Lucas 13:28).

7:55-56 / Todavia, parece que Estevão já não está consciente das pessoas ali sentadas para julgá-lo. Ele fitou os olhos nos céus (veja 1:11 quanto à direção e 3:4 quanto ao olhar), e viu a glória de Deus, e Jesus, que estava à direita de Deus (v. 55). Diz Lucas que Estevão estava cheio do Espírito Santo (v. 55), querendo dizer com isso que aquela visão não tinha sido mero resultado de uma inspiração momentânea, mas o clímax de uma vida vivida no Espírito (veja a nota sobre 2:4 e a disc. sobre 4:8 e 6:3). Uma característica de Estevão foi que ele era um homem "cheio do Espírito Santo". Portanto, era ao Espírito que ele devia sua visão interior (veja a disc. sobre 6:12-14), e agora, pelo mesmo Espírito — visto que esta é a implicação da passagem diante de nós — as percepções interiores assumem forma definida perante os olhos da mente. Olhai! clamou Estevão. Eu vejo os céus abertos, e o Filho do homem [Jesus] a figura celeste de Daniel 7:13ss. (veja a disc. sobre 6:12ss.) — que está em pé à direita de Deus (v. 56). Mas por que em pé? Noutra passagem Jesus é representado como estando sentado (cp., p.e., 2:34; Marcos 16:19; Hebreus 1:3, 13). Pode ser que a idéia seja a seguinte: o Senhor ter-se-ia levantado a fim de receber Estevão no céu, ou para defendê-lo na corte celestial, como se dois julgamentos estivessem sendo conduzi­dos, este, pelo tribunal terreno, o Sinédrio, e o outro, o celestial, o único capaz de determinar o destino de Estevão (cp. Mateus 10:28). Jesus havia prometido: "Digo-vos que todo aquele que me confessar diante dos homens também o Filho do homem o confessará diante dos anjos de Deus" (Lucas 12:8). Entretanto, a referência de Jesus é feita ao julga­mento final e, alinhado a este pensamento, C.K. Barrett sugeriu que isto para Estevão foi um vislumbre da parousia (veja a disc. sobre 1:10s.). "Somente ao morrer Estevão estaria numa situação em que poderia contemplar a vinda do Filho do homem. Seria 'no último dia', na hora da morte, que o Filho do homem seria visto" ("Stephen" [Estevão], p. 36). Há uma dificuldade aqui, que é a seguinte: em geral considera-se que a morte do crente é a ida deste para Jesus, e não a vinda de Jesus ao crente. Por outro lado, a terminologia do Filho do homem com freqüência se encontra nos evangelhos ligada ao ensino concernente à parousia. Barrett, portanto, pode ter razão. À parte os evangelhos, e na verdade à parte a palavra do próprio Jesus, este é o único lugar de todo o Novo Testamento onde ele é chamado de Filho do homem, embora possa haver um indício desse título em 17:31 (Apocalipse 1:13 faz alusão a Daniel 7:13). É certo que essa expressão não faz parte do vocabulário de Lucas.

7:57-8:1a / Ao ouvir aquelas palavras que lhes pareceram uma decla­ração blasfema de que Jesus, a quem haviam sentenciado à morte, estava ao lado direito de Deus, o Sinédrio determinou que Estevão fosse condenado à morte também. Não se faz menção a nenhuma condenação ou sentença formais. Em vez disso, a história prossegue rapidamente para seu clímax. Estevão foi arrastado para fora da cidade, conforme exigia a lei concernente ao que estavam prestes a fazer (Levítico 24:14) — talvez ao local tradicional, além do portão de Santo Estevão — e ali foi ele apedrejado até morrer. Lucas nos conta a história com parcimônia de pormenores, mas com grande força dramática. Enquanto Estevão clama­va vezes sem conta pelo nome do Senhor Jesus, para que ele recebesse seu espírito (cp. Lucas 23:46), era atingido continuamente pelas pedras (v. 59, a força do verbo grego), até cair sobre os joelhos e finalmente ao chão, morto. Pode ser que deliberadamente ele se tenha ajoelhado (v. 60). A postura usual do judeu, ao orar, era-de pé (cp. Mateus 6:5), embora a posição de joelhos não fosse desconhecida (cp. 1 Reis 8:54; Esdras 9:5). Entretanto, a genuflexão veio a tornar-se a atitude cristã distintiva, adotada quem sabe por causa da prática do próprio Senhor Jesus (cp. 9:40; 20:36; 21:5; Lucas 22:41; Efésios 3:14; Filipenses 2:10). À seme­lhança de Jesus, a última oração de Estevão foi de entrega e de pedido de perdão para seus algozes (v. 60; cp. Lucas 23:34). Esta, semelhante­mente à visão de Estevão, pode referir-se ao último julgamento.

Enquanto isso, as testemunhas, cuja função era atirar as primeiras pedras (Levítico 24:14; Deuteronômio 17:7; cp. João 8:7), à busca da melhor forma para desincumbir-se da tarefa, depuseram as suas vestes aos pés de um jovem chamado Saulo (v. 58). Assim é que nos defrontamos, pela primeira vez, com um homem que se tornará a figura central deste livro. A respeito de sua vida até este ponto diremos alguma coisa mais tarde (veja a disc. sobre 22:3). Aqui precisamos apenas perguntar por que Saulo estava presente durante a execução de Estevão. Já discutimos a dificuldade de tê-lo como membro da sinagoga dos libertos (veja a disc. sobre 6:9). De modo semelhante, a proposta segundo a qual Saulo teria sido membro do Sinédrio não está isenta de alguns problemas (veja a disc. sobre 26:10). Talvez a solução mais satisfatória seja que Saulo estava ali apenas como um espectador interessado, embora já fosse pessoa de alguma importância. Havia o costume de permitir-se que circunstantes, especialmente estudantes, permanecessem nos fundos da sala do concilio (veja B. Reicke, p. 145), de modo que numa ocasião como esta, alguém que fosse mais devotado às tradições que a maioria de seus contemporâneos (Gálatas 1:14), e que de qualquer maneira desejasse fazer-se notar pelos seus superiores hierárquicos, poderia muito bem aproveitar uma oportunidade como essa; daquela sala de reuniões conciliares a pessoa passaria ao local de execução. Nessa época, Saulo aprovou de todo o coração o assassinato de Estevão (note-se a força do termo grego). Todavia, a memória do evento deveria perse­gui-lo pelo resto da vida (cp. 22:20; 1 Timóteo 1:13). Por conveniência, daqui por diante nós nos referiremos a Saulo pelo seu nome romano, Paulo, conquanto tal não aconteça em Atos, senão no capítulo 13.

 

Notas Adicionais # 17

7:58 / um jovem chamado Saulo: o termo jovem tem aplicação ampla aqui. Pode denotar um homem de até quarenta anos de idade. Josefo aplicou-o a Herodes Agripa quando este beirava os quarenta anos (Antigüidades 18.195-204).

7:60 / tendo dito isto, adormeceu: esta é a expressão característica para a morte do crente (p.e., 1 Tessalonicenses 4:15), embora nunca tenha sido usada para Cristo. Porque Cristo morreu, nós simplesmente "adormecemos". Mas a morte de Estevão teria sido uma execução legal ou um homicídio? A regra talmúdica diz que "o blasfemo não é culpável, a menos que ele pronuncie o Nome (de Deus)". Contudo, mesmo supondo que essa regra se aplicasse nos dias de Estevão, nada há no sermão dele, como chegou até nós, nem mesmo no v. 56, que demonstre de modo conclusivo que Estevão foi culpado nos termos do Talmude. J. Klausner, From Jesus to Paul (De Jesus a Paulo, Londres: Macmillan, 1944), p. 292, assume a opinião de que Estevão não foi tecnicamente culpado, e atribui sua morte a determinadas "pessoas fanáticas" dentre os circunstantes "que decidiram o caso por si mesmas". Tais pessoas "não se incomodaram a respeito da regra judicial", afirma ele, "mas simplesmente arrastaram Estevão para fora da cidade e o mataram por apedrejamento". Todavia, o texto não menciona essas "pessoas fanáticas", e Lucas nos dá a impressão de que pelo menos algumas formas legais foram levadas em consi­deração. É melhor, portanto, considerar a morte de Estevão como uma execução legal.

A verdadeira dificuldade (e a razão mais freqüentemente citada para que consideremos a morte de Estevão um linchamento, e não decorrência de uma sentença legal) está no relacionamento que este incidente pressupõe entre o governo romano e o Sinédrio. Parece não haver dúvida que sob o governo romano, e também sob o herodiano, o Sinédrio não tinha autoridade para executar sentença de morte, sendo obrigado a submeter todos os casos desta natureza ao governador (mas veja a disc. sobre 21:27ss.). Entretanto, nesta ocasião o Sinédrio poderia estar em circunstâncias especiais, em que o poder romano estaria desautorizado e inusitadamente relaxado, como ocorrera no intervalo entre a saída de Pôncio Pilatos, em 36 d.C, e a chegada de seu sucessor, Marcelo. Todavia, ainda que 36 d.C. pareça uma datação tardia demais para a morte de Estevão, pelo menos deve ter ocorrida nos últimos anos do governo de Pilatos. Estes haviam sido os anos em que a política imperial era a de aplacar os judeus, política que se reafirmara após a remoção de Sejano. Pilatos havia sido nomeado por Sejano; agora, a posição deste estava sob risco e lhe seria melhor usar de máxima prudência. O Sinédrio teria conhecimento disto e esperaria poder pôr as coisas em ordem com o governador, ainda que agora o concilio agisse ilegalmente. Fosse como fosse, o governador morava a dois dias de distância, na Cesaréia, e os conciliares não tinham a mínima vontade de aguardar-lhe a aprovação. A situação que havia possibilitado a morte de Estevão teria também insuflado a perseguição que se seguiu, na qual outros cristãos talvez tenham também morrido (veja 26:10).