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Atos 4:32-37
Atos 4:32-37

Atos 4:32-37: Os Crentes Compartilham Seus Bens 

 

Temos aqui o segundo camafeu da série com que Lucas nos presenteia sobre a vida íntima da igreja (veja a disc. sobre 2:42-47). Neste, o autor retoma o assunto da comunhão fraterna. No que concerne aos demais temas tratados no esboço anterior, Lucas teve algo mais a acrescentar a respeito de oração (4:23-31) e, em breve, acrescentará algo mais acerca do assunto de milagres.

4:32 / Quanto à expressão Era um o coração e a alma da multidão dos que criam, note-se que no grego aparece o termo "plethos" ("todos" os crentes; veja a nota sobre 6:2). Uma das características mais impres­sionantes da vida entre os primitivos crentes era sua unidade. Essa união se expressa aqui nos termos era um o coração e a alma, expressão hebraica típica que significa acordo total (cp. 1 Crônicas 12:38). Trata-se de uma declaração genérica que apresentou suas exceções (veja a disc. sobre 5:1-11), mas tais exceções apenas confirmariam a regra, fato mais notável ainda frente ao crescimento contínuo da igreja. Esta unidade, baseada no reconhecimento de que "[há] um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos" (Efésios 4:5-6), —em suma, em seu amor divino mútuo — ficou bem demonstrada, como havia aconte­cido logo de início em sua prontidão para satisfazer as necessidades mútuas, o amor que dedicavam ao próximo (cp. 2:44s.). Assim, ninguém dizia que coisa alguma do que possuía era sua própria (novamente uma regra geral para a qual haveria exceções). Da expressão verbal de Lucas, entretanto, fica bem claro que o crente ainda era o "dono" de seus bens, até o momento em que sentisse ser mais apropriado abrir mão deles, isto é, os crentes não estavam praticando um comunitarismo total obri­gatório, mas constituíam apenas uma comunidade piedosa que atendia às necessidades uns dos outros, à medida que estas iam surgindo. A reação piedosa era voluntária, contrastando com a comunidade de Qumran, em que o compartilhamento de bens era regra imposta sobre todos os seus membros (veja a nota sobre 2:45).

A prontidão dos crentes em vender suas propriedades talvez se deva em grande parte à ardente expectativa do regresso imediato de Jesus (veja a disc. sobre 2:44). Também pode ser verdade que isso teria contribuído para piorar a situação financeira em que mais tarde se encontrariam (cp. 11:27-30; 24:17; Romanos 15:26; Gálatas 2:10). Entretanto, esta seqüên­cia não nos dá o direito de condenar a ação daqueles primitivos crentes. O discipulado é sempre custoso, de uma ou de outra maneira (cp. p.e., Lucas 9:23-26; 14:25-33), e quem poderá dizer que esse não foi o preço exato que deveriam pagar? Afinal (embora talvez não o soubessem) em breve a cidade seria destruída, e Deus, em sua infinita sabedoria, poderia tê-los induzido a utilizar os bens que tinham enquanto os tinham. Subseqüentemente, a pobreza daqueles crentes tornou-se uma ocasião de bênção tanto para eles mesmos quanto para os que lhes ministravam (cp. 2 Coríntios 9:lis.).

4:33 / O forte senso de responsabilidade social que acabamos de salientar era equilibrado por uma preocupação também intensa pelo bem-estar espiritual do povo. A despeito da sentença condenatória que o Sinédrio lhes impôs, os apóstolos prosseguiram em seu testemunho (o grego é bastante específico) da ressurreição do Senhor Jesus. O tempo do verbo (imperfeito) indica que essa era a prática dos apóstolos, enquan­to o verbo propriamente dito, em sua forma composta (gr. apodidoun), é mais expressivo do que o simples "dar". É verbo que pertence de modo especial ao jargão do comércio, significando "pagar uma dívida". É provável que Lucas estivesse sugerindo que os discípulos "deviam-no" aos outros, isto é, o testemunho pela pregação de Cristo, e também deviam ao próprio Cristo, que os havia chamado exatamente para desem­penhar essa tarefa (1:8, 22; 4:20). A adição do título Senhor ao nome de Jesus pode significar que os apóstolos pregavam a Cristo como o Senhor por causa de sua ressurreição (cp. 2:36). Acrescente-se que eles prega­vam com grande poder. Isto se refere primordialmente à eficácia da pregação deles — eram palavras que tinham o respaldo do comporta­mento e do caráter cristãos, além da unção do Espírito Santo — mas pode referir-se também à ocorrência de milagres (cp. 2:43; veja a disc. sobre 4:30). Finalmente, somos informados de que em todos eles havia abundante graça. Conquanto os apóstolos sejam mencionados de modo específico, é provável que deveríamos interpretar o termo todos eles como se fora aplicado à igreja de modo geral. Esta declaração pode ser entendida da mesma forma de 2:47, como a graça (a palavra grega charis pode significar "graça" ou "favor") com que o povo tratava os crentes.

É melhor, todavia, seguindo NIV e ECA, interpretar o texto como tratando-se da graça de Deus (cp. 6:8; Lucas 2:40). Isto faz mais sentido à conexão expressa em grego (que não transparece na tradução) entre este versículo e o seguinte, a saber, que a ausência de necessitados entre os crentes (v. 34) era evidência da operação da graça de Deus sobre o povo (cp. 2 Coríntios 5:14).

4:34-35 / A linguagem destes versículos, em que o pretérito grego é utilizado à vontade, deixa bem claro que os crentes não dispuseram de suas propriedades de uma só vez, repentinamente. Ao contrário, iam vendendo-as pouco a pouco, à medida que as necessidades surgiam. A declaração do v. 35 leva-nos além da que está em 2:44, e isso de maneira inteiramente coerente com o aumento no número de crentes. A primeira referência parece ligar-se a indivíduos que ministravam às necessidades dos outros numa base puramente provisória. Agora, organizou-se um sistema assistencial completo, como ocorria nas sinagogas. Aqui, pela primeira vez, lemos a respeito de um fundo assistencial comum admi­nistrado pelos apóstolos. Fazia-se distribuição desse fundo aos necessi­tados (cp. 6:1), de tal modo que os próprios apóstolos talvez estivessem entre os beneficiários (cp. 3:6). Se eram ao mesmo tempo curadores responsáveis pelo dinheiro, estariam numa posição difícil, mas é eviden­te que a igreja depositava neles toda confiança. Dentre os que estavam sendo socorridos pelo fundo talvez estivessem os que haviam sofrido privações pela única razão de serem cristãos (cp. João 9:22; 12:42; 16:2).

4:36-37 / Ao longo dos anos, muitos crentes teriam participado desse fundo assistencial, quer como recebedores quer como doadores, mas um contribuinte é agora colocado em evidência, mediante menção particular — José, chamado pelos apóstolos de Barnabé... levita, natural de Chipre (v. 36). Logo Barnabé deveria desempenhar um papel importante no esforço missionário da igreja. A apresentação dele aqui serve, portan­to, a um propósito duplo: prover um excelente exemplo de como os bens materiais eram partilhados, e advertir-nos quanto à importância dessa mordomia, mediante a história que a seguir será narrada. Um terceiro propósito poderia ter sido salientar o contraste entre o retrato da igreja aqui pintado e a conduta de dois de seus membros na narrativa que se segue (5:1-11). No grego, estes dois parágrafos (4:32-37 e 5:1-11) estão ligados pela conjunção adversativa "mas". A antiga lei mosaica que proibia aos levitas possuírem terras (Números 18:24; Deuteronômio 10:9) aparentemente havia sido cancelada há muito tempo (cp. Jeremias 32:7ss.; Josefo, sendo um sacerdote, possuía terras perto de Jerusalém, Vida 422-430). Não está bem claro se o terreno que Barnabé vendeu ficava em Chipre ou na Palestina; todavia, o fato de sua parente, a mãe de João Marcos, ter propriedades em Jerusalém, pode sugerir que seu terreno ficava na Palestina. O texto só diz que ele havia nascido em Chipre.

 

Notas Adicionais # 10

4:34 / E o depositavam [o dinheiro] aos pés dos apóstolos: Haenchen argumenta que por trás desta expressão está o velho costume segundo o qual quando alguém coloca seu pé sobre uma pessoa, ou sobre um objeto, adquiria direitos de propriedade e livre uso destes (p. 231). Entretanto, ainda que Haenchen tenha razão ao fazer derivar esse termo de um costume tão antigo, seu uso aqui talvez não tenha a mínima implicação em direitos legais de propriedade. Outra hipótese seria que essa expressão deriva da atitude usual do aluno perante seu professor; este se senta em poltrona colocada num pedestal, enquanto aquele se senta no chão, a seus pés (veja a disc. sobre 22:3). A idéia dessa expressão é que as dádivas eram entregues para serem administradas pelos apóstolos, para o que estes tinham toda autoridade.

4:36/José, chamado pelos apóstolos de Barnabé: (trad. lit.). A preposição "por" ("pelos"), em ECA, equivale a "de" no grego ("dos"), algo estranho, mas que tem precedentes. Lucas a emprega nesse mesmo sentido em 2:22. A sugestão de Ehrhardt de que esse homem era chamado de "Barnabé dos apóstolos" por ter comprado deles o direito de ser apóstolo também, de modo algum nos convence (p. 21). Lucas acrescenta que esse nome significa Filho da Consolação; "nabas" refletiria ou o aramaico newaha, "pacificação", "conso­lação" (a transcrição grega anormal teria sido facilitada pela pronúncia suave do b, ou alguma forma da raiz nb, que significa "profetizar". Segundo esta última hipótese, o nome significaria estritamente "filho de profeta", ou "filho de profecia", mas a exortação era supremamente uma função profética (15:32; 1 Coríntios 14:3), e fosse como fosse, Lucas está menos interessado na derivação do nome do que na configuração do caráter do homem.

Levita, natural de Chipre: Logo após a época de Alexandre, o Grande, e possivelmente antes mesmo, já havia judeus em Chipre, e 1 Macabeus 15:23 indica que lá estavam em número considerável. Josefo relata que eles floresciam nessa ilha no começo do primeiro século a.C. (Antigüidades 14.199), e Filo diz que uma comunidade grande e presumivelmente próspera espalhou-se pela ilha, durante o primeiro século d.C. (Embassy to Gaius [Embaixada a Gaio], 28.