Temos aqui o segundo camafeu da série com que Lucas nos presenteia sobre a vida íntima da igreja (veja a disc. sobre 2:42-47). Neste, o autor retoma o assunto da comunhão fraterna. No que concerne aos demais temas tratados no esboço anterior, Lucas teve algo mais a acrescentar a respeito de oração (4:23-31) e, em breve, acrescentará algo mais acerca do assunto de milagres.
4:32 / Quanto à expressão Era um o coração e a alma da multidão dos que criam, note-se que no grego aparece o termo "plethos" ("todos" os crentes; veja a nota sobre 6:2). Uma das características mais impressionantes da vida entre os primitivos crentes era sua unidade. Essa união se expressa aqui nos termos era um o coração e a alma, expressão hebraica típica que significa acordo total (cp. 1 Crônicas 12:38). Trata-se de uma declaração genérica que apresentou suas exceções (veja a disc. sobre 5:1-11), mas tais exceções apenas confirmariam a regra, fato mais notável ainda frente ao crescimento contínuo da igreja. Esta unidade, baseada no reconhecimento de que "[há] um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos" (Efésios 4:5-6), —em suma, em seu amor divino mútuo — ficou bem demonstrada, como havia acontecido logo de início em sua prontidão para satisfazer as necessidades mútuas, o amor que dedicavam ao próximo (cp. 2:44s.). Assim, ninguém dizia que coisa alguma do que possuía era sua própria (novamente uma regra geral para a qual haveria exceções). Da expressão verbal de Lucas, entretanto, fica bem claro que o crente ainda era o "dono" de seus bens, até o momento em que sentisse ser mais apropriado abrir mão deles, isto é, os crentes não estavam praticando um comunitarismo total obrigatório, mas constituíam apenas uma comunidade piedosa que atendia às necessidades uns dos outros, à medida que estas iam surgindo. A reação piedosa era voluntária, contrastando com a comunidade de Qumran, em que o compartilhamento de bens era regra imposta sobre todos os seus membros (veja a nota sobre 2:45).
A prontidão dos crentes em vender suas propriedades talvez se deva em grande parte à ardente expectativa do regresso imediato de Jesus (veja a disc. sobre 2:44). Também pode ser verdade que isso teria contribuído para piorar a situação financeira em que mais tarde se encontrariam (cp. 11:27-30; 24:17; Romanos 15:26; Gálatas 2:10). Entretanto, esta seqüência não nos dá o direito de condenar a ação daqueles primitivos crentes. O discipulado é sempre custoso, de uma ou de outra maneira (cp. p.e., Lucas 9:23-26; 14:25-33), e quem poderá dizer que esse não foi o preço exato que deveriam pagar? Afinal (embora talvez não o soubessem) em breve a cidade seria destruída, e Deus, em sua infinita sabedoria, poderia tê-los induzido a utilizar os bens que tinham enquanto os tinham. Subseqüentemente, a pobreza daqueles crentes tornou-se uma ocasião de bênção tanto para eles mesmos quanto para os que lhes ministravam (cp. 2 Coríntios 9:lis.).
4:33 / O forte senso de responsabilidade social que acabamos de salientar era equilibrado por uma preocupação também intensa pelo bem-estar espiritual do povo. A despeito da sentença condenatória que o Sinédrio lhes impôs, os apóstolos prosseguiram em seu testemunho (o grego é bastante específico) da ressurreição do Senhor Jesus. O tempo do verbo (imperfeito) indica que essa era a prática dos apóstolos, enquanto o verbo propriamente dito, em sua forma composta (gr. apodidoun), é mais expressivo do que o simples "dar". É verbo que pertence de modo especial ao jargão do comércio, significando "pagar uma dívida". É provável que Lucas estivesse sugerindo que os discípulos "deviam-no" aos outros, isto é, o testemunho pela pregação de Cristo, e também deviam ao próprio Cristo, que os havia chamado exatamente para desempenhar essa tarefa (1:8, 22; 4:20). A adição do título Senhor ao nome de Jesus pode significar que os apóstolos pregavam a Cristo como o Senhor por causa de sua ressurreição (cp. 2:36). Acrescente-se que eles pregavam com grande poder. Isto se refere primordialmente à eficácia da pregação deles — eram palavras que tinham o respaldo do comportamento e do caráter cristãos, além da unção do Espírito Santo — mas pode referir-se também à ocorrência de milagres (cp. 2:43; veja a disc. sobre 4:30). Finalmente, somos informados de que em todos eles havia abundante graça. Conquanto os apóstolos sejam mencionados de modo específico, é provável que deveríamos interpretar o termo todos eles como se fora aplicado à igreja de modo geral. Esta declaração pode ser entendida da mesma forma de 2:47, como a graça (a palavra grega charis pode significar "graça" ou "favor") com que o povo tratava os crentes.
É melhor, todavia, seguindo NIV e ECA, interpretar o texto como tratando-se da graça de Deus (cp. 6:8; Lucas 2:40). Isto faz mais sentido à conexão expressa em grego (que não transparece na tradução) entre este versículo e o seguinte, a saber, que a ausência de necessitados entre os crentes (v. 34) era evidência da operação da graça de Deus sobre o povo (cp. 2 Coríntios 5:14).
4:34-35 / A linguagem destes versículos, em que o pretérito grego é utilizado à vontade, deixa bem claro que os crentes não dispuseram de suas propriedades de uma só vez, repentinamente. Ao contrário, iam vendendo-as pouco a pouco, à medida que as necessidades surgiam. A declaração do v. 35 leva-nos além da que está em 2:44, e isso de maneira inteiramente coerente com o aumento no número de crentes. A primeira referência parece ligar-se a indivíduos que ministravam às necessidades dos outros numa base puramente provisória. Agora, organizou-se um sistema assistencial completo, como ocorria nas sinagogas. Aqui, pela primeira vez, lemos a respeito de um fundo assistencial comum administrado pelos apóstolos. Fazia-se distribuição desse fundo aos necessitados (cp. 6:1), de tal modo que os próprios apóstolos talvez estivessem entre os beneficiários (cp. 3:6). Se eram ao mesmo tempo curadores responsáveis pelo dinheiro, estariam numa posição difícil, mas é evidente que a igreja depositava neles toda confiança. Dentre os que estavam sendo socorridos pelo fundo talvez estivessem os que haviam sofrido privações pela única razão de serem cristãos (cp. João 9:22; 12:42; 16:2).
4:36-37 / Ao longo dos anos, muitos crentes teriam participado desse fundo assistencial, quer como recebedores quer como doadores, mas um contribuinte é agora colocado em evidência, mediante menção particular — José, chamado pelos apóstolos de Barnabé... levita, natural de Chipre (v. 36). Logo Barnabé deveria desempenhar um papel importante no esforço missionário da igreja. A apresentação dele aqui serve, portanto, a um propósito duplo: prover um excelente exemplo de como os bens materiais eram partilhados, e advertir-nos quanto à importância dessa mordomia, mediante a história que a seguir será narrada. Um terceiro propósito poderia ter sido salientar o contraste entre o retrato da igreja aqui pintado e a conduta de dois de seus membros na narrativa que se segue (5:1-11). No grego, estes dois parágrafos (4:32-37 e 5:1-11) estão ligados pela conjunção adversativa "mas". A antiga lei mosaica que proibia aos levitas possuírem terras (Números 18:24; Deuteronômio 10:9) aparentemente havia sido cancelada há muito tempo (cp. Jeremias 32:7ss.; Josefo, sendo um sacerdote, possuía terras perto de Jerusalém, Vida 422-430). Não está bem claro se o terreno que Barnabé vendeu ficava em Chipre ou na Palestina; todavia, o fato de sua parente, a mãe de João Marcos, ter propriedades em Jerusalém, pode sugerir que seu terreno ficava na Palestina. O texto só diz que ele havia nascido em Chipre.
4:34 / E o depositavam [o dinheiro] aos pés dos apóstolos: Haenchen argumenta que por trás desta expressão está o velho costume segundo o qual quando alguém coloca seu pé sobre uma pessoa, ou sobre um objeto, adquiria direitos de propriedade e livre uso destes (p. 231). Entretanto, ainda que Haenchen tenha razão ao fazer derivar esse termo de um costume tão antigo, seu uso aqui talvez não tenha a mínima implicação em direitos legais de propriedade. Outra hipótese seria que essa expressão deriva da atitude usual do aluno perante seu professor; este se senta em poltrona colocada num pedestal, enquanto aquele se senta no chão, a seus pés (veja a disc. sobre 22:3). A idéia dessa expressão é que as dádivas eram entregues para serem administradas pelos apóstolos, para o que estes tinham toda autoridade.
4:36/José, chamado pelos apóstolos de Barnabé: (trad. lit.). A preposição "por" ("pelos"), em ECA, equivale a "de" no grego ("dos"), algo estranho, mas que tem precedentes. Lucas a emprega nesse mesmo sentido em 2:22. A sugestão de Ehrhardt de que esse homem era chamado de "Barnabé dos apóstolos" por ter comprado deles o direito de ser apóstolo também, de modo algum nos convence (p. 21). Lucas acrescenta que esse nome significa Filho da Consolação; "nabas" refletiria ou o aramaico newaha, "pacificação", "consolação" (a transcrição grega anormal teria sido facilitada pela pronúncia suave do b, ou alguma forma da raiz nb, que significa "profetizar". Segundo esta última hipótese, o nome significaria estritamente "filho de profeta", ou "filho de profecia", mas a exortação era supremamente uma função profética (15:32; 1 Coríntios 14:3), e fosse como fosse, Lucas está menos interessado na derivação do nome do que na configuração do caráter do homem.
Levita, natural de Chipre: Logo após a época de Alexandre, o Grande, e possivelmente antes mesmo, já havia judeus em Chipre, e 1 Macabeus 15:23 indica que lá estavam em número considerável. Josefo relata que eles floresciam nessa ilha no começo do primeiro século a.C. (Antigüidades 14.199), e Filo diz que uma comunidade grande e presumivelmente próspera espalhou-se pela ilha, durante o primeiro século d.C. (Embassy to Gaius [Embaixada a Gaio], 28.