Atos 3:11-26
Atos 3:11-26

Atos 3:11-26: Pedro Prega aos Circunstantes

 

A transcrição de Lucas do sermão que Pedro pregou ao lado do pórtico de Salomão talvez contenha um memorial de tudo o que de fato o apóstolo disse nessa ocasião. Também podemos considerar esse sermão como típico da doutrina que em geral era pregada nessa época pelos cristãos, quando evangelizavam os judeus. Este sermão revela uma cristologia mais desenvolvida do que a do dia de Pentecoste — ou pelo menos é uma cristologia expressa em termos mais ricos, conquanto ainda distintamente judaicos e do período mais primitivo da igreja. Aqui Pedro enfatiza o papel desempenhado por Jesus como o Servo Sofredor de Deus, e como o Profeta parecido com Moisés, a quem se deve prestar máxima obediência. "O povo escolhido com quem Deus fez uma aliança é desafiado a reconhecer Jesus como o cumprimento de profecias e promessas antigas, e a receber esta oportunidade de voltar a Deus antes que o Messias regresse a fim de acabar de cumprir todos os propósitos de Deus" (Neil, p. 84).

3:11 / O pátio externo do templo, o pátio dos Gentios (veja a nota sobre o v. 2), era rodeado por pórticos, um dos quais era conhecido como o pórtico de Salomão, e ficava no muro oriental (veja Josefo, Antigüida­des 15.391-420; cp. 20.219-223). Em seus pórticos, os escribas manti­nham suas escolas e debates (cp. Lucas 2:46; 19:47; João 10:23), e foi aqui que Pedro falou à multidão, estando o mendigo ainda bem perto dele e de João.

3:12-13 / A primeira preocupação de Pedro foi negar que o milagre houvesse sido realizado por qualquer poder ou santidade, quer da parte de João, quer da parte dele mesmo, Pedro (v. 12). Portanto, não havia necessidade de o povo ficar encarando os apóstolos (veja a disc. sobre o v. 4), como se estes houvessem feito algo grandioso. O que fora feito se devia totalmente a Deus, a quem Pedro identifica como o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, o Deus de nossos pais (v. 13). Esta descrição encontra-se primeiramente na narrativa de Êxodo (Êxodo 3:6, 15s; 4:5; cp. Atos 7:32), mas reaparece de tempos em tempos no Antigo Testamento, em outras ocasiões importantes (p.e., 1 Reis 18:36; 1 Crônicas 29:18) e talvez seja mencionada aqui com o objetivo de sublinhar a fidelidade de Deus à sua aliança. O vocativo de Pedro ao dirigir-se ao povo: Homens israelitas (v. 12; veja a nota sobre 1:6), pode ter tido o mesmo propósito. O tema da fidelidade de Deus torna-se importante na última parte do sermão (vv. 25s.), não sendo, porém, menos importante aqui, pois constitui a base da premissa de Pedro ao fazer a declaração do v. 13. Deus glorificou a seu filho Jesus exatamente porque a promessa da aliança se cumprira no Senhor Jesus.

Tanto a descrição de Jesus como o Servo quanto a referência ao fato de ele ter sido glorificado foram tiradas da profecia de Isaías 52:13-53:12, que se inicia assim: "Meu servo... será engrandecido" (veja as notas sobre 8:32s. e 11:20). É quase certo que Pedro tinha em mente a ressurreição e ascensão de Jesus, e o apóstolo na verdade estava afirman­do que esta profecia havia se cumprido naqueles eventos, em que Deus não só manifestara sua presença e poder divinos, como também havia revestido Jesus de glória divina. O glorificado Jesus, por sua vez, revestira seus apóstolos de poder, a fim de agirem em seu nome. Assim foi que Jesus manifestou sua presença na cura ocorrida ali mesmo (veja o v. 16) — e tudo isso demonstra a apreciação que Deus faz de seu servo, muitíssimo diferente da apreciação que a nação havia feito. É que o povo preferiu matar o Senhor, a quem vós entregastes (a tradução do grego é literal; veja a nota sobre 4:10), mesmo quando o governador romano, Pôncio Pilatos, havia decidido libertá-lo (o texto grego sugere que este foi o julgamento de Pilatos), perante a face de Pilatos negastes [a Jesus], isto é, o povo exerceu tanta pressão sobre o governador que no fim este cedeu às exigências judaicas (cp. João 19:15; também Atos 28:18s.).

3:14 / Assim foi que o povo condenou à morte um homem inocente, alguém que na verdade era o Santo e o Justo. Se tomarmos o Santo no sentido de "alguém devotado ao serviço de Deus", é possível que Pedro ainda estivesse pensando em termos do Servo de Isaías 52-53, conquanto em geral se suponha que essa referência é mais abrangente (cp., p.e., 2 Reis 4:9; Salmo 106:16). Seu emprego aqui se deve em parte ao fato de Pedro já haver usado esse termo ao citar o Salmo 16:10 (2:27, "o teu Santo"). Seja como for, independente de sua derivação, o termo é reconhecido agora pela igreja como descrição apropriada de Jesus (cp. 4:27; João 6:69; 1 João 2:20; Apocalipse 3:7; também Marcos 1:24; Lucas 4:34).

Quanto ao segundo epíteto, "o Justo", dificilmente se poderia negar que foi inspirado pela profecia de Isaías, visto que nesse livro o Servo é chamado de Servo justo de Deus (Isaías 53:11; cp. Isaías 11:5; 42:6; Jeremias 23:5; 33:15; Zacarias 9:9; Enoque 38:2; 46:3; 53:6). Encontrou-se esse título novamente nos lábios de Estevão em Atos 7:52, em 22:14 é Ananias quem o emprega. Aqui está outra descrição aceitável de Jesus (cp. 1 Pedro 3:18; 1 João 2:1; veja as notas sobre 11:20, e também R. F. Zehnle, p. 52, para quem o título "santo e justo" era "um epíteto messiânico do profeta parecido com Moisés").

Mas apesar de todas as qualidades evidentes de Jesus, expressas por esses títulos, permanece o fato de que a nação como um todo o havia negado (negastes) — é a mesma palavra usada no v. 13, agora porém com maior peso. Indo contra todas as evidências de que Jesus era "santo e justo", os judeus achavam que Pilatos lhes fizera um favor ao matá-lo, libertando um assassino em seu lugar.

3:15 / Pedro enfatiza fortemente a hediondez do crime do povo: Mataste o Autor da vida. A palavra Autor representa uma palavra grega com ampla gama de significados, inclusive o de "líder", "fundador" e "autor" (cp. 5:31; Hebreus 2:10; 12:2), de modo especial este último sentido, que se refere a alguém de quem procedem coisas boas ou más, havendo participação de outras pessoas. E possível que este tenha sido o significado intencionado por Pedro, visto que fora naquele exato lugar que Jesus havia proclamado a si próprio como o doador da vida (João 10:28; cp. João 1:4). Por outro lado, poderíamos argumentar também que o sentido que Pedro tinha em mente seria o de "líder". Tendo em mente a ressurreição, Pedro poderia ter pensado em Jesus como sendo o primeiro de muitos que haveriam de ressurgir dentre os mortos (veja a disc. sobre 4:2; cp. 1 Coríntios 15:20). Certamente é a respeito da ressurreição que Pedro se põe a falar em seguida. É que acima da história triste da rejeição de Jesus pelo povo, permanece o fato que Deus ressuscitou [a Jesus] dos mortos. Os apóstolos presenciaram esse fato: nós somos testemunhas. Diz o grego: "[Jesus] a quem Deus ressuscitou, de quem somos testemunhas" (veja as notas sobre 4:10), o que deixa bem claro que a mensagem dos apóstolos incluía outros fatos além da ressur­reição — eles eram testemunhas no sentido mais amplo do termo (cp. 1:8, 22; 10:39) — embora, é claro, a ressurreição fosse o tema ao qual voltassem com maior freqüência.

3:16 / Aqui está, pois, a explicação sobre o que havia acontecido ao mendigo coxo. Deus havia glorificado seu Servo ao ressuscitá-lo e elevá-lo à posição de extremo poder, e mediante o exercício desse poder, Jesus havia curado aquele homem. Pedro afirma isto com muita ênfase. Duas vezes ele menciona "o nome" com referência a Jesus (veja a disc. sobre v. 6), e duas vezes o nome de Jesus é explicitamente mencionado, de modo que fica claríssimo que a cura se deve a Jesus. Pedro também enfatiza o meio pelo qual a cura do coxo se realizou. Pela fé (o grego transmite a idéia de "por causa da fé") no nome de Jesus, este homem... foi fortalecido. Aqui se afirma a respeito de Jesus que ele foi o objeto da fé curadora. Mas a própria fé foi despertada "mediante Jesus" (assim afirma o texto grego; cp. 1 Pedro 1:21), isto é, pelo fato de os apóstolos pregarem a Jesus. Do princípio ao fim, portanto, Jesus foi verdadeira­mente o autor da vida deste mendigo coxo.

3:17 / O tom do sermão muda do meio para o fim, deixando a condenação e partindo para a conciliação, e esta mudança é marcada por uma mudança no vocativo. Pedro agora se dirige ao povo chamando as pessoas de irmãos. Diz ele que o que fizeram a Jesus, fizeram-no por ignorância. Isto poderia ser dito também a respeito de seus líderes (cp. Mateus 22:19; João 5:39). Por trás desta concessão talvez estivesse a antiga distinção entre pecados cometidos conscientemente e pecados cometidos involuntariamente (cp. Números 15:27-31). No caso de Jesus, como neste que agora discutimos, embora houvesse culpa, havia também lugar para a misericórdia (cp. 13:27; Lucas 23:24; João 8:19; 1 Coríntios 2:8; 1 Timóteo 1:13).

3:18 / Um fator adicional era que a morte de Jesus havia sido predeterminada por Deus. Temos aqui novamente o paradoxo da respon­sabilidade humana nos eventos predeterminados (veja a disc. sobre 2:23). As Escrituras refletem a realidade de a morte de Jesus ter sido predeterminada e, de acordo com Pedro, o peso desse ensino está nestas palavras: o Cristo havia de padecer (veja as notas sobre 11:20). Surge, então, uma dificuldade: O Messias sofredor, longe de ser encontrado em todos os seus profetas, só aparece em poucos deles. Em vista deste fato, é provável que devamos entender todos os seus profetas de modo coletivo, de tal modo que o que um deles afirmou seja atribuído a todos. Seja como for, num sentido lato todos os profetas anteciparam a redenção messiânica, embora talvez não a tenham conhecido, ou não tenham conhecido os meios pelos quais a redenção haveria de realizar-se (cp. 1 Pedro 1:11). Mas o que Deus havia anunciado, o Senhor assim cumpriu nos eventos atuais delineados no sermão de Pedro.

3:19-20 / Portanto, todas estas coisas constituíam as Boas Novas. Pedro não as combinou numa ligação explícita, mas fez a implicação clara: em razão do que Jesus havia feito, Deus "lhes apagaria os pecados" — não apenas os que estavam diretamente relacionados à morte de Jesus, mas todos os pecados — bastando que os pecadores se arrependessem e se convertessem: arrependei-vos, pois, e convertei-vos. Esta frase põe em relevo o que significa arrependimento (veja a disc. sobre 2:38): não se trata de mera mudança de coração, mas um tipo de mudança que entroniza a Deus no coração. Assim é que arrependimento e fé quase se tornam sinônimos (cp. 9:35; 11:21; 14:15; 26:18, 20; 28:27). A promessa de que Deus perdoará pecados expressa-se por meio de uma figura impressionante: "apagar" — remover todos os vestígios do pecado. Quando Deus perdoa, ele também esquece. Além do mais, o arrependi­mento abre caminho para todas as bênçãos do reino de Deus, sejam do presente, sejam do futuro (veja as notas sobre 1:3 e 2:17). A maior parte dos comentaristas concorda em que tempos de refrigério é expressão referente ao futuro, ao regresso de Jesus (mas cp. Mateus 11:28; veja a disc. sobre 1:1 Os.). Neste contexto, contudo, este versículo tem sido entendido às vezes como se a segunda vinda de Jesus seria determinada pela reação das pessoas à pregação do evangelho: "Arrependei-vos, a fim de que Deus possa enviar..." Todavia, isto não tem cabimento. O momento da volta de Jesus já foi fixado, e nada pode alterá-lo. Tempos de refrigério pela presença do Senhor literalmente significa "da face do Senhor" (cp. 5:41; 7:45). Tais tempos são representados como sendo o tempo presente diante de Deus, no sentido que o Senhor decretou-os e predeterminou-os definitivamente (cp. 1:7; veja também a discussão sobre o v. 21). A razão por que pregamos o evangelho é que desconhe­cemos o momento da volta de Cristo, e não o contrário; não pregamos o evangelho a fim de apressar esse evento. Pondo de lado esta questão, permanece a realidade de que para partilhar das bênçãos da segunda vinda precisamos primeiro "converter-nos". A descrição de Jesus neste versículo como Jesus Cristo, que já dantes foi pregado não deve ser entendida como se o Senhor não houvesse sido pregado senão depois de sua ascensão, e que não havia sido reconhecido como o Messias em sua primeira vinda. Todas as evidências apontam para o fato de o Senhor ter sido reconhecido como o Messias, e que ele próprio tornou-se totalmente consciente de sua missão ao ser batizado. Quanto ao verbo "pregar", ou "nomear, escolher", veja a disc. sobre 22:14.

3:21 / É verdade que a messianidade de Jesus ainda não havia sido reconhecida fora da igreja, e não o seria enquanto ele não voltasse. No entretempo, o Senhor deve ficar no céu: convém que o céu o contenha (quanto ao verbo convém, veja a disc. sobre 1:16), não como se gozasse uma espécie de aposentadoria, mas ei-lo governando a igreja e o próprio mundo até os tempos da restauração ("tempos" é tradução literal; talvez Pedro tenha usado o plural a fim de transmitir a idéia de que o evento ainda estaria muito longe; cp. v. 20) tempos da restauração de tudo [por Deus]. Num sentido sumamente importante, a renovação de todas as coisas já havia começado com a primeira vinda de Jesus — e até mesmo antes, com a chegada de João Batista (cp. Malaquias 4:5s.; Mateus 11:14; 17:11). Todavia, o pensamento aqui é o da consumação do reino na volta de Jesus (veja a nota sobre 1:3). Esta mensagem havia sido proclamada por Deus há muito tempo por meio de todos os seus profetas (cp. v. 18; Isaías 34:4; 51:6; 65:17; etc).

3:22/0 cumprimento das Escrituras continuou sendo o tema de Pedro. Agora ele se refere a Deuteronômio 18:15-19. A citação da LXX não é exata (Bruce, Acts, p. 113, pensa tratar-se de amálgama de vários versículos), mas as diferenças não são importantes. Tanto para Lucas, como para Pedro, parece que só lhes interessava uma referência genérica à passagem. O texto provém de um contexto em que Moisés está advertindo o povo contra o emprego da adivinhação como meio de descobrir a vontade de Deus. "Deus não lhes permitiu fazer isso", disse Moisés, mas "levantará um profeta para vocês". O sentido original foi que Deus enviaria um profeta de tempos em tempos, conforme as circunstâncias o exigissem, mas o emprego do singular, um profeta, induziu o povo a pensar que se tratava de um profeta em particular, um segundo Moisés, que apareceria no final dos tempos, ou como o Messias, ou como outra figura escatológica (veja, p.e., João 1:21, 25; 6:14; 7:52 mg.; 1QS 9.1 Os.; 4QTLevi 5-7; e M. Black, Scrolls, [Rolos], p. 61; veja também as notas sobre 11:20). Os samaritanos, dentre outros povos, haviam herdado tal tradição, de modo que o profeta parecido com Moisés, sob o nome de Taheb, "o que Retorna", era a figura dominante de sua escatologia, na qual, muito significativamente, esse profeta era visto como o "Restaurador", alguém que traria as pessoas de volta à verdadeira religião (cp. João 4:25; veja J. MacDonald, p. 443). É preci­samente esta associação de idéias que parece ter levado Pedro a parar de falar a respeito dos tempos da restauração de tudo (v. 21), para citar Deuteronômio 18:15-19 (cp. 7:37).

3:23 / A referência a Deuteronômio serviu a dois propósitos. Primei­ramente, ajudou a estabelecer a messianidade de Jesus sob outro título (Pedro evidentemente interpretava o Profeta como o Messias). Em segundo lugar, ajudou a conduzir o sermão ao ponto do apelo, visto que a profecia também envolve uma advertência (expressa aqui, segundo parece, com a ajuda de linguagem tomada de empréstimo de Levítico 23:29, embora se encontre uma linguagem semelhante em várias passa­gens; cp. Gênesis 17:14; Êxodo 12:15, 19; Levítico 17:4, 9; Números 15:30): Todo aquele que não escutar esse profeta será exterminado dentre o povo. É provável que a advertência se dirija aos desobedientes propositais. Advertências desse tipo nunca estão fora de lugar na prega­ção cristã, mas sempre pertencem, como aqui, a um contexto de interesse afetuoso (cp. "Ora, irmãos" do v. 17).

3:24 / No grego, este versículo está intimamente ligado aos versículos 22-24: "pois Moisés disse: o Senhor vosso Deus levantará dentre vossos irmãos um profeta semelhante a mim... todos os profetas, desde Samuel... anunciaram estes dias". Entretanto, o tema da punição foi deixado para trás, e Pedro voltou ao pensamento da renovação de todas as coisas, e fala agora de seu começo — estes dias [atuais] — em vez de falar do fim, quando o Senhor voltar. Samuel pode ter sido selecionado por uma de duas razões possíveis. Encontra-se no livro que leva seu nome a profecia fundamental concernente à descendência de Davi (2 Samuel 7:12), e Pedro pode ter desejado incluir a expressão "Filho de Davi", por implicação, em sua descrição de Jesus. Todavia, Samuel também foi considerado o fundador da escola profética e o padrão de toda a profecia posterior (cp. Hebreus 11:32), de modo que todos os profetas, desde Samuel pode significar nada mais do que "toda profecia" (cp. "seus profetas", vv. 18, 21). Fosse como fosse, o que havia sido profetizado agora estava acontecendo (cp. Mateus 13:16s.; Efésios 3:9s.).

3:25 / Aos olhos de Pedro, a preocupação máxima de toda profecia estava muito bem expressa na promessa de Deus a Abraão: Na tua descendência serão benditos todos os povos da terra (Gênesis 22:18; cp. Gênesis 12:3; 18:18; 26:4). Nosso texto difere do da LXX em que este traz "nações", palavra com freqüência traduzida por "gentios", enquanto o grego traz "famílias" (patriai; NIV e ECA trazem povos). Esta troca pode ser deliberada, quer da parte de Lucas, quer da fonte que ele usou, a fim de evitar a impressão de que Pedro já estava aberto à idéia de receber gentios livremente na igreja. Mas na LXX, no Salmo 21:28 (22:27) e em 1 Crônicas 16:28 encontramos a frase "famílias de nações", o que nos sugere que ambas as palavras poderiam ser empregadas para os mesmos povos, e que uma foi empregada livremente em lugar da outra na passagem à nossa frente. Seja como for, é difícil evitar a conclusão de que Pedro quis de fato incluir os gentios, conquanto apenas num sentido qualificado, por causa de sua referência no versículo seguinte. A tradução oferecida por NIV e por ECA, para este versículo, talvez nos dê o sentido original, que seria mediante os descendentes de Abraão, isto é, através da nação dos judeus, que "todos os povos da terra seriam abençoados". Todavia o hebraico, seguido pela LXX, mostra apenas o singular, "descendência" (lit, "semente"), e isso (como no caso de Deuteronômio 18:15-19, veja a disc. sobre o v. 22), levou-nos a entender que se trata de um descendente em particular, o Messias. Entretanto, neste caso, a interpretação era peculiarmente cristã. Não existe nenhuma evidência de que Gênesis 22:18, ou qualquer outra passagem semelhante, um dia receberam uma interpretação messiânica no judaísmo anterior à era cristã. Paulo aplicou essa passagem nesse sentido em Gálatas 3:8, e com toda certeza foi neste sentido também que Pedro a teria usado aqui. Aos beneficiários da aliança, portanto, Pedro podia anunciar que sua promessa lhes havia sido cumprida em Jesus. O grego exerce alguma ênfase mediante o pronome vós, como se estivesse dizendo: "Vós, entre todos os demais povos, e em consideração à posição privilegiada, deve-ríeis dar boas vindas ao Senhor".

3:26 / Esta ênfase sobre o privilégio dos judeus sob a aliança leva o sermão à finalização: Ressuscitando Deus a seu Filho Jesus, primeiro o enviou a vós. "Levantou" seria a tradução exata do grego, pois a referência aqui não é à ressurreição, mas à encarnação, porque o sentido é o de colocar alguém no palco da história (cp. GNB, que traz "esco­lheu"). A mesma expressão é empregada a respeito do profeta, no v. 22. A questão aqui é que Deus o escolheu e o mandou aos judeus, em primeiro lugar. Novamente temos um vós enfático: "primeiro o enviou a vós, dentre todos os povos". Esta declaração alinha-se com a insistência do próprio Jesus em restringir seu ministério aos judeus (Mateus 15:24), visto que era bastante justo que o Senhor ministrasse a eles, e cumprisse sua missão entre eles em primeiro lugar (cp. 13:46; Romanos 1:16; 2:10). Mas isso não significou que o Senhor não se preocupasse com os gentios (cp., p.e., Mateus 28:19; João 10:16; 17:20; Atos 1:8). Podemos supor, portanto, que quando Pedro falou que o Senhor foi enviado aos judeus em primeiro lugar, ele o fez pelo menos com o espírito de Jesus, de modo que poderia ter acrescentado: "e aos gentios também", ainda que isso desse a entender que os gentios deveriam tornar-se judeus a fim de partilhar a bênção (veja a disc. sobre 2:39; 10:10ss.). Já se definiu que bênção era essa (vv. 20, 21, 24), mas pelo emprego do tempo subjuntivo, "vos abençoasse", Lucas poderia estar expressando a verdade adicional de que essa bênção continuaria a ser oferecida. O subjuntivo é qualificado pela frase "ao desviar-se, cada um, das suas maldades", que NIV e ECA de modo correto presumem ser uma oração subordinada temporal. O desviar-se (efetuado por Deus; veja a disc. sobre 5:31) é o meio pelo qual a bênção é adquirida. Devemos observar, ainda, que o apelo é feito ao indivíduo — cada um — e é expresso em termos de "desviar-se" da iniqüidade; todavia, antes (v. 19), esse meio fora definido em termos de "convertei-vos" [a Deus]. O verdadeiro arrependimento abrange ambas as realidades, sendo a única reação apropriada por parte dos que foram favorecidos pela graça de ouvir o evangelho.

 

Notas Adicionais # 7

3:13 / Seu filho Jesus: Nenhuma outra passagem do Antigo Testamento influenciou o Novo Testamento mais do que o assim chamado Cântico do Servo, de Isaías (42:1ss.; 49:1-3, 5, 8; 50:4-9; e de modo especial 52:13-53:12). Não contando as citações formais (Mateus 8:17; 12:18-21; Lucas 22:37; João 12:38; Atos 8:32s.; Romanos 10:16; 15:21), há uma alusão claríssima a Isaías 52:10-12 em Marcos 10:45 e 14:24. Marcos 9:12 talvez faça eco de Isaías 53:3, e outras possíveis alusões têm sido encontradas em Mateus 3:15 (cp. Isaías 53:11) e Lucas 11:22 (cp. Isaías 53:12) e no emprego de "será entregue" em Marcos 9:31; 10:33; 14:21; etc, inclusive Atos 3:13 (cp. Isaías 53:12). A voz que se ouviu na ocasião do batismo de Jesus delineou seu ministério em termos de Isaías 42:1. O título de "Servo" não aparece (na ECA) em Atos 3:13, 16 (menciona-se "filho") nem em Atos 4:27, 30 (aparece "Filho"), na oração da igreja; mas a influência da figura do Servo aparece com clareza em Romanos 4:25; 5:19; 8:3s. 32-34; 1 Coríntios 15:3; 2 Coríntios 5:21; Hebreus 9:28; e 1 Pedro 2:21-25; 3:18. J. Jeremias conclui que "não há nenhuma área da vida cristã de fé, primitiva, que não fosse tocada ou marcada pela Cristologia do Ebed (servo)" ("pais theou", TDNT, vol. 5, p. 712). Diz ele que pertence "à era mais primitiva da comunidade cristã" (p. 709), e na verdade deve ter tido origem no próprio Jesus (pp. 712ss.). Veja ainda as notas sobre 8:32s.

Perante a face de Pilatos: O grego foi traduzido literalmente, podendo ser traduzido com maior simplicidade, "diante de", ou "na presença de" Pilatos. Mas às vezes esse termo tem um sentido mais hostil, denotando um confronto face a face (cp. 25:16; Gálatas 2:11). É o que talvez ocorra aqui. Os judeus encararam a proposta de Pilatos para libertar Jesus com uma recusa terminante.

3:14 / Um homicida: isto é, Barrabás, um bandido (João 18:40, ECA: "um assaltante") que cometera assassinato num levante de natureza política (Marcos 15:7; Lucas 23:18s.). Diz o texto grego: "um homem, um assassino", que éuma expressão idiomática; a expressão "um homem" ligada a um substantivo signi­fica "ofício de má reputação". Trata-se de expressão mais forte do que se se dissesse apenas um homicida e nada mais. Assim, salienta-se mais ainda o contraste entre Barrabás e o Autor da vida.

3:16 / NIV traduziu bem a linguagem grega rebuscada deste versículo. Segue-se uma tradução literal feita por Hanson, p. 74: "E pela fé em seu Nome este homem, a quem vós vedes e conheceis, seu Nome tornou-o forte, e a fé que através dele opera lhe deu esta cura na presença de vós todos". Várias sugestões têm sido apresentadas para explicar a dificuldade desta sentença: primeiramen­te, que teria havido má compreensão de uma frase aramaica; em segundo lugar, que a segunda menção de "seu Nome" é adição posterior. Sem essa adição entender-se-ia de modo natural que Deus é o sujeito da oração, o que dá bom sentido à frase. Terceira hipótese: que Lucas teria feito várias tentativas de esboçar a frase, e esqueceu-se de limpá-la ao editar a forma final, de modo que suas várias tentativas ficaram misturadas e confusas no texto como o temos hoje.

3:18 / O Cristo: NIV traz "seu Cristo", frase parecida com a do Salmo 2:2, que traz "seu Ungido". Esta última expressão encontra-se em Atos 4:26. É possível que Pedro estivesse com Salmo 2:2 em mente. A frase "o Cristo de Deus" indicaria o relacionamento entre Pai e Filho, a idéia de um pertencer ao outro, a comunhão existente entre Cristo e Deus, o que talvez seja a marca da cristologia primitiva destes capítulos.

3:21 / Até os tempos (Gr. "tempos", no plural; veja a disc. anterior) da restauração de tudo, dos quais Deus falou: esta seria uma restauração que a maioria dos judeus entendia como sendo de ordem política — a restauração da independência nacional e a reunião das tribos dispersas (veja a disc. sobre 1:6; 26:7). Jesus, por outro lado, havia falado dessa restauração em termos morais e espirituais. Quanto a Pedro, é provável que se tenha posicionado no meio termo, partilhando a ênfase espiritual de Jesus, mas restringindo a esperança apenas para Israel (veja a disc. sobre 2:39; 3:26), confirmando, assim, "a impressão de que temos diante de nós um sermão bem primitivo, dos primeiros anos da igreja" (Ehrhardt, p. 19; cp. Dunn, Jesus, p. 160).